Manchetes Socioambientais
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O trabalho do ISA no monitoramento de "pressões e ameaças" parte do entendimento de que "pressão" é um processo de degradação ambiental (desmatamento, roubo de madeireira, garimpos, incêndios florestais etc) que ocorre no interior de uma área legalmente protegida, como Terra Indígena, Território Quilombola e Unidade de Conservação, como Parques e Florestas Nacionais, levando a perdas de ativos e serviços socioambientais. Ou seja, "pressão" é um processo que pode levar à desestabilização legal e ambiental de determinada área protegida. Já "ameaça", por sua vez, é a existência de risco iminente de ocorrer alguma degradação ambiental no interior de uma área protegida.
Tomadas cumulativamente, as pressões e ameaças podem gerar impactos socioambientais negativos de magnitude e alcance suficientes para desencadear o colapso no funcionamento dos ecossistemas e dos modos de vida das populações locais - e impactos negativos nas cidades. Os povos indígenas e populações tradicionais, como comunidades quilombolas e ribeirinhas, são diretamente atingidos pelas pressões e ameaças por terem seus territórios invadidos, suas florestas desmatadas e seus rios desviados e contaminados.
Aqui no ISA, o trabalho de monitoramento das pressões e ameaças é feito por pesquisadores especializados em antropologia, direito socioambiental, modelagem de uso da terra e avaliação de políticas públicas. A equipe diretamente responsável pelo monitoramento de áreas protegidas do ISA atua na conexão entre pesquisadores, formuladores de políticas públicas e tomadores de decisão. As áreas de atuação desse time abrangem o desenvolvimento de pesquisas científicas e aplicações em sistemas de informação geográfica e ferramentas de monitoramento da situação jurídica, demográfica e projetos governamentais que impactam as áreas protegidas.
O monitoramento de áreas protegidas do ISA possui conhecimento acumulado no monitoramento de pressões e ameaças desde a década de 1980 como um dos primeiros programas da sociedade civil no Brasil a construir uma plataforma organizada de sistemas de informação socioambiental, antes mesmo que setores governamentais. Esse trabalho iniciou-se no antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), em 1983, com o monitoramento de Terras Indígenas no Brasil. Em 1992, ainda no Cedi, foi iniciado o monitoramento das Unidades de Conservação na Amazônia e outras áreas públicas. Seu Sistema de Informação de Áreas Protegidas (SisArp) é um sistema Web com 15 módulos de dados por temas específicos, incluindo o módulo de pressões e ameaças. O SisArp alimenta sites institucionais que disponibilizam dados, mapas, imagens, vídeos, notícias, publicações e análises temáticas. Alguns sites estão listados abaixo, confira!
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Versão especial da Enciclopédia PIB para a educação infantil; |
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o primeiro produto web de referência neste tema, lançado em junho de 2007 |
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painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
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painel de informações sobre o estado das florestas e alertas de pressões e ameaças que impactam as áreas protegidas. |
O sócio-fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, comenta os impasses e o histórico das negociações internacionais sobre mudanças climáticas até a conferência em Belém
Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 17/11/2025
Nesta segunda (17), completou uma semana, em Belém do Pará, a tão esperada COP30, a 30ª conferência da ONU sobre as mudanças climáticas globais. Será a primeira COP no Brasil sobre o tema, após a própria convenção da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) e a sobre Diversidade Biológica (CDB) terem sido assinadas pelos chefes de Estado em 1992, no Rio de Janeiro. O mundo volta ao Brasil, 33 anos depois, para avaliar o que ocorreu.
Mas não será bem assim. A situação é reavaliada a cada COP e em todo lugar, mas o simbolismo pátrio faz algum sentido. Antes, os acordos climáticos focavam a redução das emissões oriundas da queima de combustíveis fósseis, que são o principal fator de emissões dos gases de efeito estufa causadores da crise climática, mas rejeitavam incluir as emissões oriundas da destruição das florestas, que passaram a integrar a discussão da convenção há alguns anos.
De 1992 a 2025, rolaram muitas outras tentações. Em 1997, foi acordado o Protocolo de Quioto, que, no entanto, só entrou em vigor em 2005, após um complexo processo de ratificação. Ele estabelecia metas obrigatórias de redução de emissões para os países que iniciaram a Revolução Industrial, os países ditos desenvolvidos, os emissores históricos. O protocolo foi boicotado pelos EUA e poucos países reduziram suas emissões. Podemos dizer, no entanto, que houve avanços importantes na geração de energia eólica e solar, por exemplo.
Assinado no âmbito da convenção de mudanças climáticas, o Acordo de Paris veio em 2015, incorporando todos os países, por meio das metas de redução das emissões assumidas por cada um deles, as Contribuições Nacionais Determinadas (NDCs, na sigla em inglês). O objetivo geral seria conter o aumento da temperatura média na superfície do planeta em até 2 ºC, de preferência em 1,5 ºC, este último teto alcançado ano passado, cinco anos antes do esperado (2030).
BRASIL NA FRENTE
Como anfitrião do evento, o Brasil chega à COP30 em posição de força, mas imerso em contradições. Sua matriz energética é relativamente limpa, com forte presença de energia hidráulica. A redução da disponibilidade de chuvas em várias regiões, no entanto, vem fazendo o país usar termelétricas movidas a diesel, piorando a qualidade da matriz.
Mas a maior parte das nossas emissões decorre do desmatamento e do uso inadequado do solo, ou seja, da agropecuária. Com o êxito dos programas de redução do desmatamento, em especial na Amazônia, o Brasil é um poucos países que diminuíram emissões, numa contribuição enorme em contexto difícil.
Mas tem um outro grilo nesse mato. O governo federal decidiu pavimentar a rodovia BR-319, entre Porto Velho (RO) a Manaus (AM). A estrada atravessa a região mais conservada da Amazônia e, caso se repita ao longo dela o mesmo patamar de desmatamento ocorrido na BR-163, entre Cuiabá (MT) e Santarém (PA), o país vai estourar as metas futuras de redução de emissões e haverá o risco de romper, para sempre, todos os ciclos naturais gerados pela floresta, a exemplo da regulação climática.
Sobretudo na Amazônia, as estradas induzem o desmatamento por sua capacidade de atrair e viabilizar atividades predatórias associadas a ele, como a grilagem de terras e o garimpo ilegal.
O governo propõe implantar um programa de desenvolvimento regional sustentável para a BR-319. É uma providência urgente, mas insuficiente. Já circulam notícias de que a grilagem de terras públicas está mais intensa após o anúncio da obra. A presença do Estado na região é fundamental.
A Petrobrás inicia a pesquisa sobre a presença de petróleo na região da Foz do Rio Amazonas. A empresa alega que esse petróleo será necessário para cobrir a redução da produção do pré-sal, prevista a partir de 2030. Significa que a Petrobrás não espera redução do consumo interno, ou da exportação, nem antes, nem logo depois de 2030.
MUNDO LENIENTE
Dez anos depois, seria agora a hora de fazer um balanço do Acordo de Paris. Porém, os EUA se retiraram dele e dezenas de países ainda não apresentaram as suas NDCs. As emissões globais seguem crescendo e o mundo todo sente o agravamento das condições climáticas, com a ocorrência de eventos extremos.
Que ninguém espere demais, nem desperdice tempo e esperança. Não está no horizonte nenhum acordo geral efetivo para reduzir as emissões globais. Podem rolar acordos colaterais, como para reduzir às emissões de metano e para a criação do chamado TFFF, um fundo para a proteção das florestas tropicais proposto pelo Brasil.
Enquanto a temperatura da atmosfera bate recordes, tudo arde em Gaza e em outros cenários de guerra. A tensão entre Rússia e Otan agrava-se, a posição dos EUA é ambígua e leva seus aliados a investir em armas, em vez do combate às mudanças climáticas ou à fome. A guerra é o lado latente da febre mundial e a urgência que os muitos governos entendem.
Alguma notícia boa poderá vir de outros membros do BRICS. A China, maior emissora atual, deve anunciar a antecipação do seu pico de emissões, antes previsto para 2030. A Índia, terceira maior emissora atual, quer quadruplicar o uso de energias renováveis e reduzir a intensidade de CO2 em relação ao PIB.
"FODAM-SE!"
Antes da COP30 começar, o empresário Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo, apareceu do nada, como um gênio da lâmpada, reconhecendo que a mudança climática vai atingir os mais pobres, mas negando que ela vá extinguir a humanidade. Ele disse que o financiamento climático não é prioritário e que é melhor a filantropia investir no combate à doença e à fome. Foi exemplar da postura de parte da elite global diante da emergência climática.
Enquanto a COP30 segue, em Belém, em Iauareté, em São Gabriel da Cachoeira (AM), na fronteira com a Colômbia, no outro extremo da Amazônia brasileira, o Rio Uaupés está no nível mais baixo da história. Não é uma estiagem isolada, mas recorrente, com efeitos cumulativos. Impede a navegação, a assistência social e o abastecimento, sobretudo das populações indígenas. Provoca a mortandade dos peixes, contamina a água e prolifera doenças. Gates poderia enviar um galão de água mineral para Iauareté.
Nos desvios do Acordo de Paris, a dissimulação vai virando cara de pau. A diplomacia da “enrolation” chegou no limite, assim como as metas de redução de emissões não foram atingidas e a temperatura média global passou de 1,5 ºC, assim como os oceanos continuam morrendo.
Vai se instaurando uma diplomacia do “fodam-se!”. Não é o negacionismo clássico, de dizer que não existe mudança climática, ou que ela não decorre da queima de combustíveis fósseis. Os atores sabem da situação e do seu porquê, mas querem se esconder no final da fila (da morte).
Sobreviver e fortalecer a resiliência da vida é a resposta política essencial para esses tempos. Furar a fila, organizar a multidão e evitar o inferno e os seus porteiros. O espaço das COPs, à margem das negociações oficiais, favorece a articulação entre os movimentos sociais, cientistas, comunicadores, organizações civis e todos os que precisam se descobrir para cooperar.
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O sócio-fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, fala sobre a força e potencial das mobilizações da sociedade civil nas COPs em geral e na conferência de Belém, no mês que vem
Artigo publicado originalmente em 16/10/2025, no site da Mídia Ninja
COP quer dizer “Conferência das Partes” e é a reunião entre os países, membros da ONU, que participam de um determinado tratado ou convenção. São reuniões periódicas, em que os diplomatas negociam acordos e ações conjuntas, atualizam dados e avaliam a evolução da implementação desses tratados.
COP costuma ser assunto de especialistas, de pouco interesse para os comuns mortais. Mas, no Brasil, nunca se falou tanto de COP como agora, quando se aproxima a realização, em Belém (PA), no mês que vem, da COP-30, a trigésima conferência sobre a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, assinada pelos chefes de estado em 1992, no Rio de Janeiro. O evento chega à Amazônia 33 anos depois.
Quase todo mundo quer ir a Belém. Para os de fora, é uma oportunidade especial para estar na Amazônia, numa encantadora capital cheia de mangueiras e de manguezais, além, claro, de milhões de paraenses. Para os de dentro, é hora de atrair, da multidão visitante, apoiadores para projetos mais perenes.
Zona Azul
Zona Azul é como se chama a área em que ocorrerá a reunião oficial. Espaço nobre, auditórios, restaurantes. Uma cidadela dentro da cidade. É lá que circularão as delegações e as personalidades, é onde se farão as reuniões formais e se chegará, ou não, a novos acordos sobre o clima. É o foco da badalação.
Os representantes oficiais dos governos têm presença garantida. Mas, para os da sociedade civil e do movimento social, exige-se um crachá específico, que está sendo disponibilizado a conta-gotas e, no momento, é o objeto de desejo de meio mundo. Afinal, deslocar-se até Belém e não pisar na Zona Azul, pode soar bem mal.
Significa que apenas algumas centenas ou poucos milhares de pessoas, entre as centenas de milhares que estarão em Belém, vão poder, de fato, acompanhar ou participar diretamente das negociações. Sem esquecer que há muitas cartas marcadas nesse jogo e quem o decide já deve ter decidido antes dele começar.
Nem tudo estará azul nessa zona. Os Estados Unidos, maior emissor histórico de gases do efeito estufa e segundo maior emissor atual, estão, sob a presidência de Donald Trump, retirando-se outra vez das negociações internacionais. O confronto entre a Rússia e a Ucrânia continua e a paranóia da guerra espalha-se pela Europa, que está investindo pesado em armas em vez de combater a fome, a violência e o efeito estufa.
Até agora, a maioria dos países ainda não apresentou as suas NDCs, que são as propostas em que definem as medidas que pretendem tomar e as metas de redução de emissões que se dispõem a cumprir nos próximos anos. Apesar do agravamento da situação climática, dos prejuízos e sofrimentos que ela acarreta, poucos países aumentarão os seus esforços e as perspectivas, principalmente para os povos mais vulneráveis, são sombrias.
Lado de fora
Não valerá a pena ficar muito tempo de bobeira na Zona Azul. Belém estará repleta de espaços alternativos, com muitos eventos políticos e culturais, com informações e debates essenciais, produtos da floresta, festas e gentes de todas as cores e amores. O Museu Emílio Goeldi estará aberto ao público, que terá acesso a um pouco do melhor conhecimento científico disponível sobre a Amazônia.
Estarão em Belém milhares de representantes indígenas, quilombolas, afrodescendentes, extrativistas e agricultores familiares de todas as partes da Pan-amazônia, e só alguns terão acesso à Zona Azul. Mas eles estarão relatando as suas experiências em enfrentar os impactos da mudança climática nos seus territórios. Haverá manifestações massivas pelas ruas e praças da cidade.
Todo mundo estará torcendo para que a COP-30 seja um sucesso, que mais países apresentem suas NDCs e que haja acordo em torno de metas mais ousadas de redução de emissões. Também se espera que mais recursos sejam disponibilizados para bancar a adaptação dos países e povos mais vulneráveis à mudança do clima. Tomara que a China, maior emissora atual, e o Brasil, como anfitrião, anunciem novas providências e ocupem os espaços vazios nas negociações.
Os processos multilaterais são complexos, penosos e lentos ao extremo. São as pressões de fora para dentro que podem movê-los. Tragédias climáticas instigam as consciências, mas só o clamor das ruas pode mover as montanhas. Em todas as COPs, o melhor sempre esteve do lado de fora. Em Belém, não será diferente.
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Planalto envia Projeto de Lei e Medida Provisória ao Congresso com redação alternativa a vetos
Errata: ao contrário do que informamos inicialmente, nesse caso a Medida Provisória enviada pelo governo ao Congresso não tranca a pauta dos plenários da Câmara e do Senado após 45 dias de tramitação no Congresso.
Texto atualizado em 23/9/2025, às 21:00.
No final da manhã desta sexta (8/8), no último dia do prazo, o governo anunciou os vetos ao Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, que cria uma norma nacional do licenciamento ambiental. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou alguns retrocessos importantes, tentando chegar a um meio termo em alguns pontos do texto da nova legislação, mas a maior parte da redação aprovada pelo Congresso está mantida.
De quase 400 dispositivos, 63 foram vetados completa ou parcialmente. Desse total, 26 itens foram simplesmente excluídos. Para o restante, o governo encaminhou um PL com urgência constitucional e uma Medida Provisória (MP) com efeito imediato prevendo uma redação alternativa. O primeiro precisa ser apreciado em até 45 dias em cada uma das casas do Congresso, sob pena de trancar a pauta do plenário. A MP precisa ser analisada em até 120 dias.
A nova lei já está valendo, mas os vetos ainda serão analisados pelo Congresso, e não há prazo para isso acontecer.
Desde a aprovação inicial na Câmara, em 2021, a proposta foi considerada por pesquisadores, Ministério Público Federal, sociedade civil e movimentos sociais o maior retrocesso ambiental em mais de 40 anos no país. O projeto foi apelidado de “PL da Devastação” e a “mãe de todas as boiadas” em função da gravidade dos seus possíveis impactos.
O anúncio dos vetos foi feito no Palácio do Planalto sem a presença de Lula, que está em viagem no Acre. Do primeiro escalão do governo, estavam presentes a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o ministro da Secretaria de Comunicação, Sidônio Palmeira.
Licença Especial
Em medida polêmica, o Palácio do Planalto manteve a proposta que é considerada um dos principais retrocessos do PL: a Licença Ambiental Especial (LAE), que permite simplificar e acelerar a autorização de empreendimentos considerados “estratégicos” pelo governo. O procedimento abre caminho para que pressões políticas influenciem a concessão das licenças.
A MP enviada ao Legislativo trata desse assunto, prevendo um novo texto que assegura que a LAE terá um rito acelerado, com prazo de conclusão de até um ano, após a apresentação do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima) do empreendimento. Por outro lado, o processo não poderá ser realizado obrigatoriamente em apenas uma etapa, conforme a redação aprovada pelo Legislativo.
O mecanismo passa a valer desde já, enquanto a versão original previa seis meses para o início de sua vigência. Na coletiva de imprensa de anúncio dos vetos, os representantes do governo consideraram o instrumento como uma “inovação positiva”.
“O ‘estratégico’ não tem a ver com analisar só para dizer ‘sim’. Tem a ver com analisar também para dizer ‘não’. É possível que alguma coisa que você considere estratégica numa situação complexa a gente possa dizer que não tem mais como ser viável”, afirmou Marina Silva.
Ela disse que esse tipo de empreendimento não será “fulanizado” e que a qualidade de seu licenciamento não fica comprometida com a proposta do governo. Questionada sobre os impactos da nova redação da lei proposta pelo governo em geral, a ministra garantiu que as metas de redução do desmatamento apresentadas pelo Brasil nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas também estariam preservadas.
“O texto da MP não resolve todos os problemas da LAE. Mesmo que o órgão ambiental defina quantas e quais etapas serão obrigatórias, ainda há margem para o assédio a esse órgão”, avalia a advogada do ISA Alice Dandara de Assis Correia. Ela considera que o problema será agravado em governos com menor sensibilidade ambiental.
O cálculo político sobre o tema foi um dos mais difíceis para o Planalto. O dispositivo foi incluído na nova legislação pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). O gesto de sancionar o mecanismo e antecipar sua vigência pode ser lido como uma deferência ao senador.
Embora já tenha imposto várias derrotas ao governo, o parlamentar é considerado um aliado importante. Ele vem resistindo ao “motim” bolsonarista ocorrido ao longo da semana para pressionar pela votação da anistia aos acusados pela tentativa de golpe de estado em 2023.
Na coletiva no Planalto, a secretária-executiva da Casa Civil, Míriam Belchior, disse que a exploração de petróleo na Foz do Amazonas poderá ser discutida no conselho de governo que vai definir os empreendimentos que serão licenciados via LAE como qualquer outro (veja o vídeo da coletiva completo). Esse foi um dos motivos que teria levado Alcolumbre a propor a LAE no projeto.
Vetos
“Esses vetos asseguram que o licenciamento seja um instrumento de desenvolvimento com responsabilidade, mantendo critérios técnicos sólidos e o respeito à nossa Constituição”, afirmou Lula, já no início da noite, num post nas redes sociais. O presidente disse que os vetos protegem os direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas e garantem segurança jurídica.
"Os vetos representam a demonstração de certo compromisso do governo com a proteção socioambiental, com toda a sociedade e com o combate às mudanças climáticas”, avalia Correia. “Mas ainda precisamos analisar com muita calma e atenção os vetos, o novo projeto de lei e a MP", continua.
A advogada explica que uma possível ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a nova lei ainda está sendo avaliada pelas organizações que acompanham o assunto mais de perto, reunidas no Observatório do Clima (OC).
Um dos dispositivos vetados mais preocupantes previa alterações na Lei da Mata Atlântica (11.428/2006), abrindo caminho para o desmatamento no bioma mais ameaçado do país. A proposta abria brechas para que qualquer município, mesmo sem estrutura técnica, plano diretor ou conselho de meio ambiente, pudesse autorizar o corte de vegetação.
Outro veto derrubou dispositivos que previam o autolicenciamento, a chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Por esse mecanismo, um empresário poderia obter a autorização para o seu negócio preenchendo um formulário na internet, sem nenhum estudo ou análise prévia do órgão ambiental. De acordo com a proposta enviada ao Congresso, essa modalidade de licença não poderá abranger empreendimentos de médio impacto, mas apenas de pequeno impacto, conforme a jurisprudência do STF.
Também foram vetados os itens que excluíam das análises e medidas previstas no licenciamento as terras indígenas (TIs) e os territórios quilombolas cuja regularização não esteja concluída. Pela nova redação, enviada ao Congresso, as TIs com limites territoriais já propostos e os quilombos já certificados pela Fundação Cultural Palmares deverão ser levados em conta nos procedimentos.
“A alteração do texto avança em certa medida na defesa dos territórios indígenas e quilombolas, porém continua indo em direção contrária às decisões já proferidas pelo Supremo”, ressalva Correia. “O STF é explícito ao definir que o ato de demarcação de terras indígenas é meramente declaratório e que seus direitos são pré-existentes ao procedimento administrativo”, completa.
O dispositivo que excluía do licenciamento Unidades de Conservação (UCs) que sofressem impactos indiretos de obras e atividades econômicas também foi vetado.
Da mesma forma, foram derrubados pontos que restringiam o poder dos órgãos responsáveis por essas áreas protegidas sobre as licenças. Pela nova redação proposta pelo Planalto, os pareceres da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por exemplo, deverão ser obrigatoriamente considerados no licenciamento (saiba mais no quadro abaixo).
Expectativa
Ainda durante a tramitação no Congresso, criou-se grande expectativa sobre o veto. Ao longo dos últimos meses, ficaram cada vez mais explícitas as divergências na gestão federal. As ministras do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, Marina Silva e Sonia Guajajara, defenderam um veto amplo, enquanto ministros como Rui Costa (Casa Civil), Renan Filho (Transportes), Carlos Fávaro (Agricultura) e Alexandre Silveira (Minas e Energia) deram várias manifestações favoráveis ao PL.
O cenário mais pessimista traçado por algumas organizações ambientalistas era o de vetos pontuais, considerando a correlação de forças políticas desfavorável tanto no Congresso como no governo. Afinal, os cortes no texto foram maiores.
Outra expectativa é de que o Congresso não apenas derrube a maior parte dos vetos quanto de que haverá pressão sobre Alcolumbre para pautar o assunto rapidamente. A proposta aprovada inicialmente na Câmara, em 2021, e depois chancelada pelo Senado e (mais uma vez) pela Câmara foi concebida pela bancada ruralista e apoiada por bolsonaristas e pelo Centrão.
Na coletiva no Planalto, Marina Silva e outros representantes do governo insistiram que a sanção da maior parte do projeto representava um consenso com o Congresso e que, agora, com o novo projeto e a MP, o diálogo seguiria com o Legislativo.
“Quanto à perspectiva de derrubada dos vetos, o processo legislativo prevê essa possibilidade, mas a gente trabalha para que não ocorra. Trabalha para que haja a construção de um consenso, um diálogo com o Congresso, porque isso é o que vai permitir uma legislação sólida, harmônica e vai evitar a judicialização”, salientou Gustavo Ponce de Leon Soriano Lago, secretário-executivo da Secretaria de Relações Institucionais.
Veja quais são os principais vetos ao "PL da Devastação"
Licença Ambiental Especial. A nova redação proposta assegura que a LAE terá um rito acelerado, com um prazo para sua conclusão de até um ano, após a apresentação do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima). Por outro lado, o processo não poderá ser realizado obrigatoriamente em uma etapa, conforme a redação aprovada pelo Legislativo, mas será definido pelo órgão ambiental.
Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Se aplica apenas para empreendimentos de baixo potencial poluidor. Foi vetada a ampliação para atividades de médio potencial poluidor.
Estados e municípios. Foram vetados dispositivos que transferiam de forma ampla a cada ente federado a responsabilidade por estabelecer critérios e procedimentos de licenciamento — como porte, potencial poluidor, tipologias sujeitas a licenciamento, modalidades específicas de licenças e atividades passíveis de LAC. Com a redação do governo, terão de seguir parâmetros mínimos nacionais.
Mata Atlântica. Foram vetados os dispositivos que retirariam a proteção especial prevista na Lei da Mata Atlântica em relação à supressão de floresta nativa.
Povos indígenas e comunidades quilombolas. Foram vetados os dispositivos que restringiam a participação dos órgãos responsáveis pela proteção de povos indígenas e comunidades quilombolas no licenciamento ambiental, bem como não vinculava a sua manifestação ao resultado. Também foram vetados os itens que excluíam das análises e medidas previstas no licenciamento as terras indígenas (TIs) e os territórios quilombolas cuja regularização não esteja concluída. Pela nova redação, enviada ao Congresso, as TIs com limites territoriais já propostos e os quilombos já certificados pela Fundação Cultural Palmares deverão ser levados em conta nos procedimentos.
Cadastro Ambiental Rural (CAR). Vetada a proposta que dispensa o licenciamento ambiental para produtores rurais com CAR ainda pendente de análise pelos órgãos
ambientais estaduais. Será necessária a análise do cadastro ou a elaboração de um termo de conduta com o produtor rural.
Condicionantes ambientais. Foi vetado dispositivo que limitava a aplicação de condicionantes ambientais e medidas compensatórias apenas aos impactos
diretos, excluindo os impactos indiretos ou os efeitos sobre serviços
públicos agravados pela implantação do empreendimento. As condicionantes, no entanto, precisarão ter uma relação “direta” com o dano ambiental.
Unidades de Conservação. Vetado artigo que retirava o caráter vinculante
de manifestação de órgãos gestores dessas áreas no licenciamento de empreendimentos que afetem diretamente a unidade ou sua zona de amortecimento.
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Votação no plenário está prevista para a tarde desta quarta (21). De última hora, relator acata proposta que permite desmatar no bioma mais ameaçado do país: a Mata Atlântica
Texto atualizado em 21/5/2025 às 12:41
O Projeto de Lei (PL) 2.159/2021 foi aprovado nas comissões de Meio Ambiente (CMA) e de Agricultura (CRA) do Senado nesta terça (20). A votação no plenário está prevista para acontecer na sessão que começa às 14h desta quarta (21). Se for aprovado, o PL volta à Câmara.
A proposta implode o sistema de licenciamento ambiental no país e sua aprovação seria o maior retrocesso na legislação ambiental desde a Constituição, na avaliação de ambientalistas e especialistas.
O texto prevê a isenção de licenças para alguns empreendimentos e setores econômicos; confere a estados e municípios o poder de conceder mais dispensas; e generaliza a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), um licenciamento autodeclaratório e automático, sem análise prévia ou controle de órgão ambiental.
O PL também ameaça povos indígenas e quilombolas. Ele considera apenas os territórios dessas populações com regularização já concluída para efeito do licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades econômicas que os afetem (saiba mais no quadro ao final do texto).
O parecer aprovado agora é fruto do consenso entre os relatores na CMA, Confúcio Moura (MDB-RO), e na CRA, Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra de Agricultura do governo de Jair Bolsonaro. Na votação na Comissão de Meio Ambiente, pela manhã, Moura conseguiu piorar o texto, acatando de última hora uma emenda do senador Jayme Campos (União-MT) que abre caminho para o corte de vegetação na Mata Atlântica, o bioma mais ameaçado do país, só com 24% de cobertura vegetal original. A proposta acaba com a necessidade de autorização para o desmatamento em alguns casos. Organizações ambientalistas consideram que a emenda é um “jabuti”, ou seja, um dispositivo inserido numa proposta legislativa que não tem relação com seu tema principal.
Inconstitucionalidades
Apesar da oposição de organizações da sociedade civil e da área ambiental do governo, o PL foi aprovado por votação simbólica em ambos os colegiados sob a pressão de ruralistas e bolsonaristas. A CRA aprovou um requerimento para que a proposta seja votada com urgência no plenário.
Na CMA, votaram contra apenas Eliziane Gama (PSD-MA), Augusta Brito (PT-CE), Beto Faro (PT-PA) e o líder do governo, Jaques Wagner (PT-BA). Na qualidade de presidente da comissão, Fabiano Contarato (PT-ES) não votou, mas disse que seria contra no plenário. Eles listaram vários pontos do projeto que seriam inconstitucionais.
Eliziane lembrou que já há quatro decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) contra dispositivos da proposta, a exemplo do licenciamento autodeclaratório para empreendimentos de porte e potencial poluidor médios. De acordo com o tribunal, apenas aqueles de pequeno porte e potencial poluidor podem ser licenciados assim.
“Ou seja, o que nós temos aqui com a aprovação dessa proposta, se ela for finalizada pelo Congresso Nacional, é que fatalmente teremos outras ações que poderão derrubar esse projeto de lei”, alertou a senadora. Ela argumentou que o enfraquecimento de controles previstos no PL vai abrir caminho para que desastres como o de Brumadinho (MG) se repitam. Eliziane lembrou que, antes da catástrofe, as instalações da mineradora Vale no local tiveram sua classificação de risco reduzida para efeito da fiscalização prevista no licenciamento.
De acordo com uma análise do Instituto Socioambiental (ISA), 85% dos empreendimentos de mineração em Minas Gerais poderão ser feitos via LAC se o PL fora aprovado com sua redação atual.
“A prioridade absoluta assumida pelos parlamentares é o autolicenciamento e as isenções de licença. O conteúdo irresponsável que está sendo consolidado gerará insegurança jurídica e judicialização”, reforça Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC).
“Infelizmente, quando se vota nesta Casa, e alguns não se sentem contemplados, se recorre ao Supremo Tribunal. Eu acho que essa prática diminui o Congresso”, contrapôs Tereza Cristina. “O STF só foi contra algumas leis estaduais, porque não existia esse marco do licenciamento ambiental”, arriscou. Ela voltou a negar que a aprovação da proposta vai provocar mais desmatamento.
Outra análise do ISA, publicada nesta semana, no entanto, mostra que a aprovação do projeto coloca em risco mais de 3 mil áreas protegidas, como Terras Indígenas e Territórios Quilombolas, e pode significar o desmatamento de uma extensão do tamanho do Paraná.
Posição do governo
Ao final da sessão da CMA, já do lado de fora da sala, Wagner evitou uma resposta categórica sobre a posição do governo. “Eu fiz as ressalvas que o governo está fazendo. Na hora do encaminhamento da votação, eu vou saber como é que eles querem que encaminhe, porque tem muito destaque [emenda com proposta de alteração para plenário]. Na verdade, tem muita coisa ali que na nossa interpretação é inconstitucional”, afirmou.
Documento de orientação de voto da Liderança do Governo obtido pela reportagem recomenda a aprovação do projeto “com ajustes”. Entre os pontos listados que precisariam ser rediscutidos, aparecem a LAC, a dispensa de licença para setores como a agropecuária, o poder de estados e municípios para conceder mais dispensas e a renovação automática de alguns tipos de licença. Até a noite desta terça, não havia informação se a articulação do Planalto defenderia ou não os itens mencionados e quais deles.
Inicialmente, a votação do PL estava prevista para o início do mês. Wagner foi responsável pelo acordo que transferiu a análise da proposta para esta semana. Nesta terça, no entanto, embora ele e Contarato tenham se manifestado contra o projeto, nenhum deles sinalizaram outro movimento para evitar ou postergar a votação. Ao contrário, defenderam-na.
Há semanas, informações de bastidores dão conta das pressões do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), para que o texto fosse votado rapidamente. Isso ficou claro nas falas de Contarato e Moura, por exemplo. Há meses, Alcolumbre e o Planalto pressionavam a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede-SP), e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) pela liberação da exploração de petróleo pela Petrobrás na Foz do Amazonas. A medida beneficiará o Amapá, estado do parlamentar. Coincidentemente, o Ibama autorizou ontem o prosseguimento dos procedimentos para que a atividade possa acontecer.
Quais os principais pontos do novo relatório do PL do Licenciamento e suas consequências?
- Autolicenciamento. A Licença por Adesão e Compromisso (LAC), pela qual qualquer pessoa consegue automaticamente a licença ambiental preenchendo um formulário na internet, torna-se a regra, e o licenciamento convencional, com análise prévia do órgão ambiental, a exceção. O problema é que essa autorização não vai valer apenas para empreendimentos de pequeno porte e potencial poluidor, mas para os de médio porte, potencial poluidor e risco ambiental.
- Dispensa de licenças. A proposta concede de antemão isenção de licenciamento para 13 atividades e empreendimentos econômicos, como agricultura, pecuária, “manutenção e ao melhoramento da infraestrutura em instalações preexistentes”, sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário.
- Estados e municípios. A proposta concede poder quase ilimitado para esses entes da Federação criarem sua própria lista de isenções de licenciamento. Isso pode gerar confusão regulatória, insegurança jurídica e uma “guerra ambiental” entre quem libera mais e flexibiliza mais para atrair investimentos.
- Áreas protegidas. Terras Indígenas e territórios quilombolas cuja regularização não foi concluída não seriam consideradas para efeitos do licenciamento de empreendimentos e atividades econômicas que os impactem. As Unidades de Conservação só serão consideradas se o impacto for direto. No caso dos quilombos, mais de 80% dos territórios com processos de titulação abertos não seriam levados em consideração para impactos de licenciamento, pois não contam com seus territórios titulados. Cerca de 32% dos territórios indígenas com processos de reconhecimento iniciados podem ser afetados.
- Condicionantes. O PL pretende isentar empreendimentos privados de cumprir as chamadas “condicionantes ambientais”, jogando a conta dos seus impactos para a população e os cofres públicos. As condicionantes previstas no licenciamento são as obrigações de prevenção, redução e reparação de impactos socioambientais.
- Renovação automática. O PL permite a qualquer pessoa interessada renovar automaticamente sua licença apenas preenchendo uma declaração na internet, sem nenhuma análise dos órgãos ambientais. Se as condicionantes não forem cumpridas, o empreendedor não precisa dar satisfação a ninguém.
- Bancos. O PL impede que os bancos sejam punidos por crimes e danos ambientais cometidos por empreendimentos e empresas que eles financiam. Isso ameaça a norma que proibiu crédito bancário para desmatadores.
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Estudos colocam Rio de Janeiro e Recife como duas das cidades mais ameaçadas pela subida do mar devido às mudanças climáticas
Artigo publicado originalmente no site da Central da COP em 12/5
As mudanças climáticas fazem jogo duro contra a população. O ano de 2024 foi o mais quente da história. As pessoas sentem no dia a dia o aumento de temperatura, o aumento de desastres –como a enchente no Rio Grande do Sul e a estiagem na Amazônia –, e o aumento de doenças. Mas poucos percebem o avanço de um adversário inesperado: o mar.
O aumento tanto do nível quanto da temperatura do Atlântico Sul representa uma ameaça para o Brasil. Um estudo da ONU de 2024 aponta o Rio de Janeiro como uma das grandes cidades do mundo que serão atingidas pela elevação do nível dos oceanos. Há previsão de um aumento de 21 centímetros no nível do Atlântico Sul até 2050, tornando a capital uma espécie de campo de futebol alagado – impossível de jogar e de viver. Segundo o levantamento, entre 1990 e 2020, o nível do mar no estado do Rio de Janeiro subiu 13 centímetros.
Para se ter uma ideia, segundo o censo do IBGE de 2022, o Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, seria inundado a ponto de ser inabitável. Praias emblemáticas como Copacabana e Ipanema seriam tomadas pelo mar. As ondas cobririam quase toda a orla, causando danos à infraestrutura urbana, residências, serviços e estabelecimentos comerciais. No litoral norte do estado, em Atafona, o oceano já engoliu mais de 500 casas.
Recife, a “Veneza Brasileira”, é a capital mais ameaçada pelo avanço do mar no Brasil. Um relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas, na sigla em inglês) a coloca como a 16ª grande cidade mais ameaçada do mundo. Além disso, um estudo da Universidade Federal Rural de Pernambuco aponta que 44% do município corre risco de inundação. Mais de 200 mil pessoas vivem em áreas sujeitas a deslizamentos ou inundações. Na Paraíba, a maré e o represamento de rios estão dividindo territórios e isolando algumas aldeias da Terra Indígena Potiguara.
Em São Paulo, praias de todo o litoral estão vulneráveis ao avanço do mar. Segundo o Mapa de Risco à Erosão Costeira, do Instituto Geológico, correm risco as orlas de: Ubatuba, Praia Grande, São Sebastião, Caraguatatuba, Ilhabela, Bertioga, Guarujá, São Vicente, Itanhaém, Peruíbe, Iguape e Ilha Comprida.
Em todos os estados costeiros, há exemplos do gênero. O aumento do nível da água ameaça devastar os mais de nove mil quilômetros de costa brasileira. Turismo, pesca, mercado imobiliário, infraestrutura, arrecadação de municípios e estados, além da vida da pessoas, serão seriamente impactados.
A saga secular dos retirantes do semiárido nordestino e a piora contínua da situação do clima na região, por onde a desertificação avança, evidenciam o histórico falho do Brasil em reagir aos danos causados pelas mudanças climáticas. A falta de estratégia diante de cenários mais do que prováveis nos condena à derrota.
Enquanto o oceano aquece e cresce, o jogo da vida se torna mais acirrado. Os orçamentos militares estão em alta enquanto os recursos para enfrentar da fome à mudança climática seguem em baixa. Um relatório da iniciativa Política por Inteiro, do Instituto Talanoa, aponta que apenas R$ 1,9 bilhão, de um total de R$ 30 bilhões do orçamento federal relacionado às políticas climáticas no Brasil, em 2025, estão destinados à gestão de riscos e desastres – ou seja, 6,3% do orçamento total.
É melhor não esperar por soluções que caiam do céu, ou venham do mar. Porque, afinal, do mar elas não virão.
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O presidente e sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, defende que a conferência de mudanças climáticas em Belém precisa focar na maior causa da emergência climática: os combustíveis fósseis
Artigo publicado originalmente na Central da COP, em 13/3/2025
A 30ª conferência da ONU sobre as mudanças climáticas ocorrerá em Belém (PA), em novembro. O simples fato dela se realizar numa capital da Amazônia é muito significativo. Afinal, a importância dessa região é vital para o mundo enfrentar essa ameaça emergencial à vida. A floresta armazena enormes quantidades de carbono que, se liberadas para a atmosfera por desmatamento ou queimada, podem acelerar o aquecimento global numa escala igualmente grande.
Porém, duas circunstâncias impõem à COP 30 desafios extraordinários. A primeira: será a primeira conferência após a superação, em 2024, do 1,5 °C na temperatura média da superfície terrestre acima do nível pré-industrial. A segunda: será o palco do anúncio oficial do abandono do Acordo de Paris, o tratado internacional de combate às mudanças climáticas, pelos EUA, maior emissor histórico e segundo maior emissor atual de gases do efeito estufa causadores da crise.
O teto de 1,5 ºC orienta as metas de redução de emissões dos países, que devem apresentar nos próximos meses a atualização das suas NDCs, ou seja, seus compromissos nacionais em relação a essa meta global. Em Belém, será possível avaliar o alcance desses compromissos para conter o aumento médio da temperatura do planeta em um nível suportável.
Por sua vez, a retirada dos EUA do processo, por decisão do governo de Donald Trump, vai na direção oposta. A sua disposição em aumentar a produção de petróleo e em reduzir investimentos em energia limpa impõe retrocessos, diante de uma situação climática emergencial. É provável que alguns estados, como a Califórnia, mantenham leis e políticas para reduzir emissões, apesar do governo federal. Mas também é provável que a posição leniente de Trump estimule a saída de outros países, como a Argentina, e seja o pretexto para que outros mais não avancem nas suas metas.
Clima na floresta
Belém não é uma floresta. É uma grande cidade com mais de 1,3 milhão de pessoas. Mas o clima amazônico deve ser inspirador para a maior parte dos 50 mil visitantes esperados para a COP 30. Sua realização, em quaisquer condições, tem sabor de vitória para os que pelejaram, anos a fio, para que os acordos internacionais sobre o clima considerassem positivamente as florestas tropicais como parte do problema e da sua solução.
A COP em Belém ensejará uma mobilização sem precedentes dos movimentos sociais ligados à questão florestal, como indígenas, extrativistas, quilombolas, ambientalistas, cientistas, jovens e interessados em geral, tanto no Brasil quanto nos países vizinhos. Já vem atraindo investimentos importantes em infraestrutura e vai promover oportunidades econômicas para a cidade.
É bem provável que parte dos visitantes tenham a oportunidade, antes ou depois do evento, para conhecer melhor a região, adentrar de fato a floresta e participar de projetos de turismo de base comunitária. Seria muito enriquecedor para os visitantes, assim como para os paraenses.
O cenário amazônico será, sobretudo, um forte estímulo para avanços no trato das agendas correlatas ao binômio florestas e clima, tanto aquelas normativas quanto para apoiar iniciativas de escala para zerar o desmatamento, multiplicar a restauração florestal e potencializar as condições de vida dos povos da floresta, essenciais para o seu manejo a longo prazo. Urge incluir nessa pauta o apoio a projetos de adaptação dessas populações às novas condições climáticas.
Florestas mortas
A copaíba é uma planta medicinal da floresta amazônica. O óleo extraído dela é indicado para o tratamento de dermatite, pano branco, micoses de pele, erupção cutânea, eczema, acne, psoríase, artrite reumatoide, dor nas articulações ou musculares, cicatrização e desinfecção de feridas, caspa, tosse, bronquite, asma, gripes e resfriados, cistite e infecções urinárias, incontinência urinária, corrimento e gengivite.
A copaíba é um ícone da generosidade da floresta viva, que precisamos preservar. Ela é inimiga do desmatamento, do fogo florestal e do ressecamento do clima, que ameaçam a sua existência.
Porém, a agenda que trata da conservação é insuficiente para reverter a emergência climática. Ela não pode prescindir de outra agenda, que remete a florestas mortas. Sim, porque o petróleo, o gás natural e o carvão consistem em depósitos de matéria orgânica no subsolo, cuja queima produz 80% dos gases de efeito estufa que se concentram na atmosfera. Significa que a capacidade humana de consumir combustíveis fósseis é muito maior do que a de assassinar florestas vivas, embora esta também seja tremenda.
Por isso, o desenvolvimento desejável da agenda florestal não pode prescindir do tratamento da queima dos combustíveis fósseis. A COP 30 não pode se limitar à agenda florestal e tem que proporcionar espaço de denúncia e de cobrança sobre as emissões fósseis. Essa continua sendo a agenda prioritária, sem a qual as florestas vivas não poderão sobreviver. O cenário florestal inspirador da COP 30 não deve virar uma nuvem de ilusão.
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Mobilização pede rejeição do projeto da Câmara e que Senado aprove texto equilibrado. Se virar lei, proposta vai agravar emergência climática e o risco de mais crimes socioambientais, como os de Mariana e Brumadinho (MG)
Brasília, 31/10/2024 - Redes e organizações da sociedade civil lançam, nesta quinta (31/10), uma nova fase da campanha para pressionar o Congresso a rejeitar o Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, que destroi o licenciamento ambiental e que, se aprovado, vai agravar a emergência climática. A mobilização também reivindica que o Senado apresente uma proposta mais equilibrada do ponto de vista socioambiental.
Aprovado pela Câmara em 2021 e chamado de “PL da Devastação”, ele pode ser votado a qualquer momento nas comissões de Meio Ambiente (CMA) e Agricultura (CRA) do Senado. Se aprovado, segue para o plenário e, caso seja alterado, volta para a Câmara.
Se vier a se tornar lei, permitirá que obras com importantes impactos e riscos obtenham licença automática pelo mero preenchimento de um formulário na internet, sem qualquer análise prévia. Trata-se do mais nocivo projeto já discutido no Congresso sobre o assunto e o mais radical do “Pacote da Destruição”. Na prática, se converterá numa lei da “não licença”, ou seja, vai tornar o licenciamento uma exceção.
O “PL da Devastação” pode provocar o aumento do desmatamento, da ocorrência de extremos climáticos, da poluição e da contaminação da água, além de multiplicar o risco de novos crimes socioambientais de grandes proporções, como o da Braskem, em Maceió, e os de Mariana e Brumadinho (MG).
A plataforma lançada pelas organizações que combatem o retrocesso consiste em uma ferramenta para envio de e-mails aos senadores, alertando sobre a verdadeira aniquilação ambiental contratada pelo PL. O site lista os impactos negativos da possível aprovação do PL e os seus principais retrocessos. Para participar da mobilização, basta registrar e-mail, nome e sobrenome.
A bancada ruralista e o lobby de grandes empresas, conduzido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), pressionam pela aprovação. O embate vai aumentar ainda mais até a terceira semana de dezembro, quando termina o ano legislativo.
Os relatores nas duas comissões são, respectivamente, os senadores Confúcio Moura (MDB-RO) e Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura do governo Bolsonaro e uma das principais líderes ruralistas do Congresso. Ela já foi apelidada de “musa do veneno” por sua defesa intransigente do uso indiscriminado de agrotóxicos.
"O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental é um dos principais em debate no Senado. A votação pode confirmar, em grande parte, o texto da Câmara. Corremos o risco de aprovar a mãe de todas as boiadas, uma flexibilização absurda e a implosão do licenciamento ambiental no país", alerta Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.
“O PL 2.159 vai provocar o descontrole geral de empreendimentos causadores de impactos ambientais e climáticos, como a poluição e o desmatamento. É a maior ameaça da atualidade contra o meio ambiente, a saúde e a segurança da população. Precisamos nos unir para evitar esse retrocesso histórico”, diz Mauricio Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA).
"O PL 2159/21 é um verdadeiro ataque ao meio ambiente e à saúde pública. Ao flexibilizar a lei para que empreendimentos operem sem controle ou fiscalização adequada, coloca em risco não apenas os ecossistemas, mas também a vida e o bem-estar de milhões de brasileiros. É inadmissível que interesses econômicos prevaleçam sobre a segurança ambiental e a saúde da população.", afirma Lucas Louback, gestor de advocacy do NOSSAS.
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O sócio-fundador e presidente do ISA, Márcio Santilli, defende a mobilização da sociedade civil para disseminar experiências que garantam segurança climática
Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 24/10/2024
Não estranhem o recurso (outra vez!) à figura do apocalipse. Incêndios e enchentes, crime organizado e falsos profetas, entre outros sinais do tempo, nos aproximam dela e não é fácil achar outra similar. Também cabe repetir que o apocalipse, em geral, é o fim de “um mundo”, e que “outro mundo” virá ‒ na crença cristã, o reino de Deus na Terra. Apesar de tudo, a Bíblia empresta à esperança a sua força popular.
Em 2023, a Amazônia, que já foi chamada no passado de “pulmão do mundo”, emitiu mais gases de efeito estufa do que absorveu por causa dos incêndios florestais criminosos descontrolados. Aquecidos pelo efeito estufa, os oceanos passam a jogar na atmosfera metano, em vez de oxigênio. São muitos os sinais do “tipping point”, o ponto de não retorno, a partir do qual, segundo os cientistas, a crise climática se torna irreversível e passa a se retroalimentar.
Cidades isoladas pela seca, ou destruídas por enchentes. Ondas de calor. Recordes de incêndios, criminosos. O curso natural dos “rios voadores”, que levam chuvas da Amazônia ao centro-sul do país, foi tomado por uma gigantesca nuvem de fumaça e fuligem, afetando todo Brasil e países vizinhos.
Diz a sabedoria popular que só se aprende com amor, ou com dor. O amor é energia para proteger e socorrer vidas, e para juntar pessoas para construir o futuro. Não comove os responsáveis pela emergência climática. A dor, por si, também não ensina o suficiente para transformar. Sem acúmulo, por amor, de alianças e projetos, tudo pode voltar atrás ao passar à dor.
Resiliência do mal
Em 1970, já havia evidências científicas de que o acúmulo de CO2 e de outros gases de efeito estufa na atmosfera estava retendo mais calor dos raios solares na atmosfera e causando o aumento da temperatura média da Terra.
Em 1992, na conferência da ONU realizada no Rio de Janeiro (RIO-92), chefes de Estado do mundo todo assinaram duas convenções, sobre a conservação da diversidade biológica e sobre as mudanças climáticas globais.
O Acordo de Paris foi firmado em 2015 pelos líderes mundiais e todos os países declararam compromissos e metas para a redução da emissão de gases do efeito estufa. Ao final de uma década, os países devem renovar e repactuar esses compromissos, as chamadas “NDCs” (Contribuições Nacionalmente Determinadas, na sigla em inglês), nas próximas conferências da ONU.
Fato é que, após meio século de conhecimento sobre a grave emergência climática (ou 30 anos depois da convenção da ONU), os países ou a civilização contemporânea não foi capaz de conter o aumento das emissões e iniciar um processo de redução. Elas seguem aumentando, assim como suas fontes: a produção e uso de carvão, petróleo e gás, assim como a destruição das florestas fontes, entre outras.
Aqui no Brasil, predadores aproveitam a seca inclemente para usar o fogo como arma de vingança política, concorrência econômica ou expressão de ódio ou de revolta. A Petrobras projeta uma transição energética sem horizonte definido. Nem o setor do agronegócio mais aberto ao debate assume responsabilidades ou se organiza para conter a grilagem de terras e o desmatamento ilegal. Ele quer uma NDC sem avanços, como se o agravamento da crise climática, que tanto ameaça a agricultura, se dispusesse a nos esperar.
Entre abril e maio deste ano, Porto Alegre sofreu uma enchente devastadora, o maior desastre climático da história do Rio Grande do Sul. A negligência na manutenção do sistema de diques que protege a cidade agravou o seu impacto. Mas isso não impediu que o atual prefeito, Sebastião Melo (MDB), quase se reelegesse no primeiro turno e seja o favorito para o segundo turno, em 27 de outubro.
A tragédia, por si só, não muda a história. Ela detona a crise, mas a mudança pressupõe acúmulo prévio em opções que mobilizem corações e mentes na hora H. Em cada hora H. Do contrário, alonga-se a dor e o custo da travessia.
Além do limite
Se, por um milagre, fosse possível zerar, instantaneamente, as emissões globais, ainda assim levaria um século, ou mais, para reduzir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera a níveis anteriores à Revolução Industrial. A menos que um esforço de reflorestamento planetário possa abreviar o caminho. Porém, sequer se deu início a um processo de redução gradual das emissões globais.
Estudos recentes indicam que os eventos climáticos extremos que vêm ocorrendo em vários lugares só eram esperados para 2050, ou mais. O aquecimento global está acelerando e reduzindo o tempo para uma reação da humanidade. Enquanto isso, guerras crônicas e disputas comerciais tornam mais difícil avançar nas negociações internacionais. Veremos que metas os países assumirão na revisão das suas NDCs. Devem ficar muito aquém do necessário para enfrentar a urgência do desafio climático.
O Brasil vem reduzindo, de forma consistente, o desmatamento na Amazônia, que é o seu principal fator de emissões. Está dando um estímulo importante para o esforço mundial pela redução de emissões. Porém, desde 2023, vem sofrendo com enchentes com vítimas em várias cidades, sucessivas ondas de calor, estiagens recordes consecutivas e incêndios criminosos na Amazônia e no Pantanal, com nuvens de fuligem, menor disponibilidade de água e maiores perdas agrícolas.
Mesmo assim, a bancada ruralista no Congresso continua aprovando projetos de lei que reduzem a proteção ao meio ambiente e aos direitos dos povos tradicionais. Ataca a área ambiental do governo e prestigia céticos climáticos, chafurdando no negacionismo climático. Importa mais a lacração para uso imediato em redes sociais e discurso eleitoreiro, assim como dinheiro fácil. E o resto que se exploda!
Solução nenhuma cairá do céu, até porque a crise foi engendrada e segue sendo alimentada pela civilização humana, a quem cabe dar-lhe solução, ou não. No Brasil, o andar de cima da sociedade sinaliza que vai esticar a corda, até arrebentarem novas tragédias. Em contrapartida, moradores de áreas de risco nas cidades, famílias de agricultores, povos indígenas, comunidades tradicionais e periféricas e outros grupos vulneráveis são o foco da agenda de resistência e superação da crise, a prioridade socioambiental.
Considerando que as condições climáticas ainda vão piorar muito até que possam começar a melhorar, a agenda prioritária é a que pode salvar vidas e modos de vida dessas populações e aumentar a resiliência dos territórios e das áreas urbanas em que possam viver. Organizações e movimentos sociais podem estruturar redes de cooperação e solidariedade em torno das necessidades mais básicas para sobrevivermos ao inevitável agravamento da crise.
Floresta: água e comida
O Brasil é detentor de 12% da disponibilidade mundial de água doce. Embora essa água não esteja distribuída por igual, mais abundante onde vive menos gente, sobretudo na Amazônia, constitui um ativo geopolítico essencial num mundo super populoso e carente. Porém, com o adensamento da ocupação do território, o desflorestamento e a pressão sobre nascentes e rios, houve uma forte redução da disponibilidade e da superfície de água nas últimas décadas.
As cenas inusitadas de ribeirinhos e indígenas, caminhando quilômetros pelo leito seco dos rios, à procura de água potável, não deixam dúvidas de que, se entramos num novo normal, as comunidades da Amazônia terão que se rearranjar nos territórios e vão precisar de novas tecnologias para permanecerem neles.
A gravidade da situação justifica a convocação de uma conferência dos movimentos socioambientais em parceria com a comunidade científica, para compartilhar estudos recentes e discutir as melhores opções para enfrentar a crise. Os cientistas também estão perplexos com a aceleração da crise climática, mas as comunidades precisam dispor das informações existentes para orientar estratégias de sobrevivência.
Cada caso é um caso, mas o Brasil deve aprender com as boas iniciativas de outros países, como a experiência inspiradora da Etiópia, que promoveu o plantio de 250 milhões de árvores em um só dia, como parte da mobilização nacional continuada, ano a ano, para, com o florestamento, conter as tempestades de areia e o avanço do deserto sobre as cidades e regiões agrícolas.
Os movimentos sociais e as organizações socioambientais devem aproveitar as agendas em curso, como a conferência da ONU sobre mudanças climáticas (COP-30), em Belém, em 2025, para chamar a atenção de todo mundo para as demandas de sobrevivência impostas pela crise climática aos povos e às comunidades da floresta.
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O presidente e sócio-fundador do ISA, Márcio Santilli, comenta a crise de incêndios criminosos que assola o país
Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 10/10/2024
Brasília vivia até semana passada a maior estiagem da sua história. A água míngua nas nascentes, lagos e rios. O fogo consome a vegetação nativa, pastagens e plantações, cercando casas, animais e pessoas. Os olhos e os pulmões são obrigados a suportar a fumaça que empalidece o céu.
Apesar disso tudo, o Cerrado, adaptado ao clima seco, insiste em sobreviver. As espécies nativas brotam, as cigarras cantam, contando com a chuva que voltou ainda tímida, após mais de cinco meses de ausência.
Há uns 60 km do centro da capital federal, uma caminhonete avança por uma rodovia e para na bifurcação com uma estrada de terra. Um homem desce pela porta do passageiro, caminha calmamente até uma moita seca, tira um isqueiro do bolso, ateia fogo e deixa que o vento o leve para dentro da mata. Retorna, então, para o veículo, que retoma o caminho. O fogo queima uma área do tamanho de 570 campos de futebol e piora ainda mais a qualidade do ar, afetando quem vive ou passa por ali.
O incendiário e o seu motorista sabiam da seca, do fogo e da fumaça. Sabiam que a fumaça é tóxica e afeta a saúde de quem a respira, inclusive a deles mesmos. Só não sabiam que uma câmera de segurança havia registrado toda a operação. Com a multiplicação desses casos, a polícia suspeita de um novo estratagema para ocupar áreas públicas ou protegidas por meio de queimadas.
FALTA DE ÁGUA
Apesar da expressiva queda nas taxas de desmatamento na Amazônia, o Brasil bate o seu próprio recorde em queimadas e em poluição atmosférica. Uma nuvem gigante de fumaça e fuligem alcançou quinze estados e obrigou milhares de pessoas a recorrerem aos serviços de saúde. Por vários dias, a qualidade do ar em São Paulo foi a pior do mundo.
As condições climáticas estão excepcionalmente ruins. O aquecimento das águas do Atlântico equatorial restringe a formação das nuvens de chuva que os ventos alísios empurram através da Amazônia, formando os “rios voadores” que irrigam o centro-sul do país. A redução do volume e da superfície de água é dramática em várias regiões, afetando o abastecimento de cidades e comunidades, a geração de energia e a navegação.
Diferentemente das florestas mais secas do hemisfério norte, sujeitas a incêndios naturais, causados por raios, nas florestas tropicais eles raramente têm essa consequência. A umidade impede a combustão, exceto em áreas degradadas. Porém, o efeito da forte estiagem, por dois anos seguidos, tornou inflamáveis vastas regiões da Amazônia, do Pantanal e de outros biomas. No Brasil, mais de 90% dos incêndios florestais são causados por ação humana, acidental ou criminosa.
‘PIROTERRORISMO’
A seca não terminou, a fumaça continua no ar e as polícias ainda investigam centenas de incêndios criminosos, como o de Brasília. Não há causa única, mas há evidências de orquestração em muitos casos. Um exemplo é o dos grileiros que atuam no eixo da rodovia BR-163, que vai de Cuiabá (MT) para Santarém (PA). Multados e embargados por desmatamento ilegal, assumiram, nas redes sociais, a autoria dos incêndios florestais que infernizam a região: “Que o governo venha salvar a sua floresta”. A polícia também vê o dedo do PCC, Primeiro Comando da Capital, no fogo que destruiu canaviais no interior de São Paulo.
É comum o uso criminoso do fogo, mas, como arma política, torna-se uma ameaça à democracia. Apesar dos eventos extremos recorrentes, que não deixam dúvidas que a crise climática já está aí, ainda há quem diga que não acredita no aquecimento global. Ao incinerar inimigos, esses também se queimam. Multiplicar focos de incêndio, em anos seguidos, acelera a tendência de transição da floresta para um ecossistema mais seco e pobre na Amazônia Oriental, enquanto a ruptura nos ciclos de chuvas pode inviabilizar a agricultura em várias regiões.
Os “piroterroristas” queimam os inimigos, os vizinhos, a si mesmos e as chances de enfrentarmos a emergência climática. Não cabe aliviar. As penas previstas em lei são ridículas e há resistência no Congresso para aumentá-las. O governo federal lançou um programa de apoio às prefeituras dos 70 municípios onde ocorre maior incidência de fogo, mas 22 recusam-se a participar. Se não se evitar, o risco é incentivar uma guerra do fogo: “quem com fogo queima, com fogo será queimado”.
‘PIROPIRAÇÃO’
Além da loucura política, existem loucos avulsos de plantão. Alguns incendiários, quando detidos, alegam revolta contra o mundo para explicar as suas ações. Como não se sentem acolhidos, tocam fogo no mundo. Depois, seguem a vida como se nada houvesse. São psicopatas do fogo. Sentem-se vítimas, legítimas para queimar.
Em agosto de 2023, Apoorva Mandavilli publicou artigo na Folha de São Paulo, dizendo que “pesquisadores constataram que existe forte associação entre altas temperaturas e o aumento do número de suicídios. O calor forte tem sido vinculado a um aumento na criminalidade e agressão violenta, em hospitalizações por transtornos mentais e em mortes, especialmente entre pessoas com esquizofrenia, demência, psicose e abuso de substâncias. Cientistas estimam que para cada grau centígrado de elevação na temperatura, ocorre um aumento de quase 5% no risco de morte de pacientes com psicose, demência ou abuso de substâncias”.
Para além das patologias, a crise climática produz uma brutal sensação de impotência na maioria das pessoas. Põe em crise a expectativa de futuro da juventude. Estimula o imediatismo e o oportunismo, a busca de vantagens pessoais e a falta de empatia em relação aos demais. É como se, condenados à morte, não houvesse mais o que fazer ou só restasse se aproveitar da situação.
DEPOIS DO FOGO
Olhem bem para um mato todo queimado, com plantas e animais torrados. Quem pode fugiu. Se chover, surgirão brotas. O mato não será o mesmo de antes, mas pode voltar. É a resiliência da vida. O fogo impõe o desespero, mas o renascer repõe a esperança.
A Terra seguirá girando mesmo depois da última árvore e do último predador. Mas é improvável que todas as árvores e todos os seres humanos se queimem. Assim como é provável que os últimos sobreviventes deixem de explorar as últimas gotas de petróleo, um dos principais responsáveis pela emergência climática. Chegará o momento em que o sofrimento extremo nos forçará a superar a ameaça do aniquilamento. Será uma benção para quem viver esse momento.
Diz a Bíblia que, depois do apocalipse, virá o reino de Deus na Terra. O "piroterror" não convive, mas a "piroloucura" poderá ter cura nesse reino. Antes do total desespero, procurem um sinal de esperança, pois deve haver.
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Capital de Roraima tem pico de insalubridade causado pela fumaça das queimadas, entre janeiro e março. Qualidade do ar ficou pior que a de São Paulo 4 vezes em 2024
Em Boa Vista, em seis meses do ano, o ar respirado pela população apresenta picos de insalubridade, principalmente por causa da fumaça das queimadas e incêndios florestais. É o que revela uma pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) publicada no último dia 6. O relatório “Monitoramento da Qualidade do Ar na Cidade de Boa Vista - Roraima” registrou dados do período de 2020 a 2024.
“Do ponto de vista global, Boa Vista não é uma megacidade que produz grandes quantidades de poluentes urbanos derivados de fábricas e/ou indústrias. Por outro lado, a fumaça derivada de queimadas e incêndios (florestais e não florestais), em especial nos últimos anos, tem tornado a cidade um local insalubre por vários dias”, conclui o estudo assinado por Reinaldo Imbrozio Barbosa e Arthur Camurça Citó.
No dia 2 de abril, o ar na capital roraimense foi classificado como o 15º pior do mundo. O levantamento do Inpa lembra que, neste ano, a cidade teve quatro dias com níveis de poluição que superaram o de algumas das grandes metrópoles mais poluídas do planeta, como Hanoi, no Vietnam, e São Paulo.
De acordo com a pesquisa, nos quatro dias em questão, foi registrado um nível de material particulado no ar superior a 300 microgramas por metro cúbico (µg/m³) de PM 2.5 (partículas de poeira inaláveis de diâmetro igual ou menor que 2.5 microns) – a unidade de medida da concentração de poluentes.
O estado teve recorde de focos de calor em fevereiro deste ano, considerando a série histórica do mês desde 1998. Como várias outras regiões do país, a capital, outros municípios e terras indígenas, incluindo a Yanomami, ficaram cobertos por fumaça. O levantamento do Inpa aponta que a nuvem de poluição gerada em Roraima foi tão grande que acabou alcançando regiões relativamente distantes, como o Alto Rio Negro e o Alto Rio Solimões, no Amazonas.
Por causa da seca, o fogo se alastrou e destruiu diversas áreas de cultivo de alimentos. O Rio Branco, principal fonte de água potável do estado, chegou a atingir uma marca de 39 cm abaixo do nível mínimo de medição.
“Pico de insalubridade”
“Estamos tratando a insalubridade do ar como a poluição que pode causar danos à saúde humana. Esse impacto à saúde tem níveis diferentes, tanto pela quantidade de poluição quanto pelo público que é afetado”, explica Citó.
O “pico de insalubridade” é um período de tempo que concentra saltos nos níveis máximos de poluição. De acordo com a pesquisa, de janeiro a março, Boa Vista sofre o maior pico por causa de queimadas e incêndios, localizados principalmente no centro e norte de Roraima, em anos de extrema seca e ventos fortes, como em 2024 e 2023.
Ainda conforme o estudo, o segundo período mais crítico, de agosto a outubro, é causado pelo transporte de poluentes vindos de incêndios e queimadas situados no sul da Amazônia, em especial no oeste do Pará e localidades próximas de Manaus.
“No pico de poluição primário (janeiro a março), os valores de poluição são maiores, oferecendo riscos à população em geral”, aponta o pesquisador. “Depois desse pico, os valores de poluição baixam e podem chegar a 0 durante o período de chuvas. Mas a partir de agosto surge um novo pico de poluição, que se estende até outubro, configurando um pico de poluição secundário. Caracterizamos este trimestre como ‘pico secundário’ porque os valores de poluição são menores, oferecendo maior risco a uma parcela mais sensível da população, como crianças e idosos”, detalha.
Pelo fato de parte do estado estar acima da Linha do Equador, em Roraima o período de seca vai de outubro a março e o chuvoso, de abril a setembro, ao contrário do que acontece no resto do país.
Para se ter uma ideia do problema, nos quatros anos analisados pelos cientistas do Inpa, em 70 dias a qualidade média do ar foi classificada como “insalubre para grupos sensíveis”, “insalubre” ou “muito insalubre”. Por outro lado, em 255 dias a leitura máxima da concentração de poluentes feita ao longo do dia alcançou a classificação de “insalubre para grupos sensíveis”, “insalubre", “muito insalubre” ou “péssima” (veja a tabela).
Como a pesquisa foi feita?
Os pesquisadores observaram os dados de qualidade do ar em 1290 dias, entre julho de 2020 e maio de 2024. A pesquisa analisou médias diárias (variação ao decorrer do dia) do grau de poluição e também máximas diárias (pico de insalubridade do dia).
Com base nas médias diárias, Boa Vista teve 689 dias (53,4%) com qualidade de ar considerada boa. No entanto, nos outros 601 dias (46,6%), a qualidade do ar apresentou algum grau de risco para os moradores. Já na análise de máximas diárias, a cidade teve pico de ar insalubre em 1010 dias (78,3%), enquanto a qualidade considerada boa sofreu queda brusca em 280 dias (21,7%) (veja a tabela acima).
Para chegar aos resultados, os cientistas utilizaram dois sensores PurpleAir. A tecnologia é conectada à internet e foi instalada em Boa Vista em 2020. Conforme o estudo, há outros sensores instalados em Roraima, mas nenhum deles possui séries temporais adequadas para formatação de qualquer tipo de padrão que pudesse resultar em uma análise científica.
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