Manchetes Socioambientais
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“O encontro entre índios e brancos só se pode fazer nos termos de uma necessária aliança entre parceiros igualmente diferentes, de modo a podermos, juntos, deslocar o desequilíbrio perpétuo do mundo um pouco mais para frente, adiando assim o seu fim.”
Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, um dos fundadores do ISA
O tema "Povos Indígenas" está na origem da existência do Instituto Socioambiental. Lá se vão pelo menos quatro décadas de comprometimento e trabalho com o tema, produzindo informações para a sociedade brasileira conhecer melhor seus povos originários. Desde sua fundação, em 1994, o ISA dá continuidade ao trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), que havia sido iniciado em 1980 e que, por sua vez, remonta ao começo dos anos 1970, quando o então governo da ditadura militar lançava o Plano de Integração Nacional, com forte componente de obras de infraestrutura na Amazônia, região que era então descrita pelo discurso oficial como um "vazio demográfico".
Por meio dos relatos coletados, dados produzidos e pesquisas empreendidas por uma rede de colaboradores espalhada pelas diversas regiões do País, o Cedi ajudou a derrubar essa tese. Ao dar publicidade às informações levantadas por essa rede social do tempo do telex, o Cedi colocou, definitivamente, os povos indígenas e suas terras no mapa do Brasil. Seus integrantes ainda participaram ativamente no movimento de inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988 e, juntamente com integrantes do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) e ativistas ambientais, fundaram o ISA em 1994.
De lá para cá, ampliando sua rede de colaboradores em todo o País, o ISA se consolidou como referência nacional e internacional na produção, análise e difusão de informações qualificadas sobre os povos indígenas no Brasil. O site "Povos Indígenas no Brasil", lançado em 1997, é a maior enciclopédia publicada sobre as etnias indígenas no Brasil, com suas línguas, modos de vida, expressões artísticas etc. O site é uma das principais referências sobre o tema para pesquisadores, jornalistas, estudantes e acadêmicos.
A atuação hoje é transversal aos territórios onde atuamos, especialmente na Bacia do Xingu, no Mato Grosso e Pará, e Bacia do Rio Negro, no Amazonas e Roraima, e também envolve povos indígenas de todo o Brasil, por meio da atualização permanente do site e de seus mais de 200 verbetes, inclusão de novos textos sobre etnias emergentes e indígenas recém-contatados, além do monitoramento e cobertura jornalística sobre situações de violência e perda de direitos contra estas populações. O tema "Povos Indígenas" ainda é tratado no site "PIB Mirim", voltado ao público infanto juvenil e de educadores.
O monitoramento de Terras Indígenas também é um eixo central do nosso trabalho com o tema, e remonta à sistematização de dados e divulgação de informações iniciada pelo Cedi em 1986, e se dá por meio da produção de livros impressos e mapas temáticos sobre pressões e ameaças, como desmatamento, mineração, garimpo, obras de infraestrutura, entre outras, além do site "Terras Indígenas no Brasil".
Confira os conteúdos produzidos sobre este tema:
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Em formato de enciclopédia, é considerado a principal referência sobre o tema no país e no mundo |
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A mais completa fonte de informações sobre o tema no país |
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Site especial voltado ao público infanto-juvenil e de educadores |
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Painel de indicadores de consolidação territorial para as Terras Indígenas |
Placar agora está em 2x1 contra interpretação ruralista. Processo decisivo para Terras Indígenas deve ser retomado a partir de agosto no STF
O ministro Alexandre de Moraes manifestou-se contra a tese original do “marco temporal”, nesta quarta-feira (7), na retomada do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que decide o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs). Ele acompanhou quase integralmente o voto do relator, Edson Fachin.
“A opção nua e crua pelo marco temporal é uma opção pela segurança jurídica, mas isso não garante a paz social”, defendeu Moraes. “[Se formos aplicá-lo], estaríamos ignorando totalmente os direitos fundamentais das comunidades indígenas proclamados pela Constituição”, afirmou.
O ministro divergiu de Fachin, porém, em relação a como devem ser tratados os casos de proprietários de áreas formalmente reconhecidas como indígenas. Para Moraes, se for comprovado que a comunidade estava na terra em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição), o proprietário deve ser indenizado apenas pelas benfeitorias, como prevê a Carta Magna hoje. Se a posse indígena não for atestada nessa data, mas em outra, a indenização deverá abranger também a terra nua.
O ministro também propôs que uma população originária possa optar por outro território, que não o de ocupação tradicional, desde que com a sua “expressa concordância”. A regra não existe na legislação atual. Além disso, segundo a Constituição, as TIs são "indisponíveis" (confira os 10 pontos da "tese" no box ao final da reportagem).
Após a manifestação de Moraes, o ministro André Mendonça pediu “vistas”, ou seja, mais tempo para analisar o processo, suspendendo-o. O julgamento deve ser retomado a partir de agosto, após o recesso do Judiciário. Mendonça sinalizou que pretende devolver o caso ao plenário dentro do período regimental de 90 dias, “num prazo comum e que nós estabeleçamos”. Ele chegou a defender o “marco temporal” na mesma ação, atuando como advogado-geral da União do governo Bolsonaro.
O placar agora está em dois votos contra, de Fachin e Moraes, e um voto a favor da tese, do ministro Nunes Marques. Ainda faltam votar, nessa ordem: Mendonça, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
O julgamento começou em agosto de 2021 e estava suspenso desde setembro do mesmo ano, quando Moraes pediu “vistas”. A análise do caso já foi incluída e retirada da pauta do STF cinco vezes.
O “marco temporal” é uma tese ruralista que busca restringir os direitos dos povos originários. De acordo com ela, só poderiam ser oficialmente reconhecidas as terras por eles ocupadas em 5 de outubro de 1988. Alternativamente, teriam de provar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data, o chamado “renitente esbulho”.
A interpretação legaliza e legitima violências e expulsões sofridas por essas populações. Também ignora que elas eram tuteladas pelo Estado e não tinham autonomia para acionar a Justiça até a promulgação da Constituição.
O movimento indígena acompanha o assunto com grande expectativa e, desde segunda-feira (5), mobilizou cerca de duas mil pessoas de várias regiões e etnias num acampamento montado ao lado da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Manifestações contra a interpretação ruralista também foram realizadas ao longo da semana em outros locais no Brasil e exterior.
“Boa-fé”
Em seu voto, Moraes ponderou sobre a necessidade de se respeitar os direitos dos produtores rurais que adquiriram de “boa-fé” títulos de propriedade emitidos pelo Estado.
“Da mesma forma que as comunidades indígenas têm o direito de se indignarem por não terem suas terras demarcadas, aqueles agricultores que estiverem na terra de boa-fé têm o direito de receberem uma indenização justa. O grande culpado é o poder público", afirmou. “Me parece que não há necessidade nem do oito nem do 80, eu diria, nos reflexos da decisão do Supremo Tribunal Federal. Se continuarmos com isso, jamais conseguiremos garantir a paz no campo”, disse.
Ele o lembrou os massacres sofridos pelo povo Xokleng até a década de 1950 pelos “bugreiros”, pessoas contratadas pelo governo de Santa Catarina para expulsar e assassinar os indígenas. Moraes citou o processo colonizatório e a submissão imposta aos povos indígenas: "Muito mais que um choque de culturas, houve sim um massacre cruel em relação aos povos originários e uma submissão imposta pelo Estado, desde o início".
O caso específico analisado agora pela corte trata do recurso da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para impedir a reintegração de posse movida, em 2009, pelo governo de Santa Catarina sobre um trecho da TI Ibirama-La Klãnõ (SC), habitada pelos Xokleng, entre outras populações. A ação chegou ao tribunal, em 2016, e foi elevada à categoria de “repercussão geral” em 2019. Isso significa que a decisão sobre ela servirá de diretriz para a gestão federal e o Judiciário em relação a todas as demarcações do país.
Barroso destaca concordâncias
Mesmo após a interrupção do julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso destacou posições suas em comum com as de Fachin e Moraes.
“Considero muito importante os aspectos de concordância manifestados pelo ministro Alexandre de Moraes em relação ao voto do ministro Edson Fachin, desmistificando, ao meu ver, com acerto, ambos, a ideia de que haveria um 'marco temporal' assinalado pela presença física em 5 de outubro de 1988 e reconhecendo que a tradicionalidade e a persistência da reivindicação em relação à área, mesmo que desapossadas, também constitui fundamento de direito para as comunidades indígenas”, salientou
Barroso também defendeu a redefinição do conceito de “renitente esbulho”, exceção à regra do "marco temporal" defendida em um julgamento anterior da Segunda Turma do STF.
“Evidentemente não se pode nem se deve exigir das comunidades tradicionais que atuem da mesma forma que a cultura dominante, ajuizando ações judiciais, fazendo notificações judiciais ou tomando providências que não são compatíveis com as culturas tradicionais”, argumentou. “Portanto, ainda que se queira preservar essa ideia de ‘esbulho renitente’, ela tem que ser reconceituada para uma permanente manifestação de inaceitação daquele desapossamento injusto”, concluiu.
Avaliação indígena
Também estavam presentes no STF a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), o cacique Raoni Metuktire e a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana.
Xakriabá considerou positivo o resultado da sessão e elogiou o voto de Moraes. “Também já prevíamos que ia entrar com o pedido de vistas, mas conseguimos agora dar um fôlego, porque saímos com voto favorável”, comentou.
A deputada avaliou que a manifestação do ministro pode influenciar positivamente a tramitação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, proposta ruralista que prevê a aplicação do “marco temporal”, foi aprovada recentemente pela Câmara e agora está no Senado.
"Para nós, que enfrentamos o PL 490, que tenta acelerar e antecipar a tese do 'marco temporal', é uma vitória importante”, comemorou. “Então, neste momento, para enfrentar o [PL] 2903 [nova numeração do PL 490] no Senado, nós temos uma vantagem”, afirmou.
“Mas precisamos permanecer vigilantes, porque a 'bancada do desmatamento' ainda segue fortalecida. Certamente, o ministro Alexandre de Moraes, que tem votado muito coerentemente em favor da democracia, votar junto com os povos indígenas é uma sinalização importante para dizer que não vai existir democracia sem demarcação dos territórios indígenas”, enfatizou.
Já o assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) Maurício Terena classificou o voto de Moraes como um “meio termo” entre os dois votos anteriores, de Fachin e Nunes Marques.
“Essa tese ‘meio termo’ tem alguns problemas, justamente porque ela prevê, por exemplo, a instituição da indenização prévia, ou seja, isso pode causar problemas internos entre nós, isso pode causar o assédio de pessoas querendo comprar terras indígenas e ocupar os territórios. Para os direitos dos povos indígenas não existe negociação, não existe 'meio termo' ”, criticou.
Tese proposta por Alexandre de Moraes
(Transcrito da transmissão da TV Justiça; sujeito a revisão após publicação oficial do voto)
1) A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário à posse das terras ocupadas tradicionalmente pelas comunidades indígenas.
2) A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo os seus usos, costumes e tradições, nos termos o parágrafo 1º do artigo 231 do texto constitucional.
3) A proteção constitucional aos direitos [dos povos] originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
4) Inexistindo a presença do marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou de renitente esbulho ou conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada, que tem a ver por objeto a posse ou o domínio; ou a ocupação de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena; ou a exploração do solo, rios e lagos nela existentes; assistindo ao particular direito à indenização prévia em face da União, em dinheiro ou títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, tanto em relação à terra nua quanto em relação às benfeitorias realizadas.
5) Na hipótese prevista do item anterior, sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada, e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja [sua] expressa concordância.
6) O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto 1.775/1996 é elemento fundamental para demonstração da tradicionalidade da ocupação da comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições.
7) O redimensionamento da terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório, nos termos das normas vigentes.
8) As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios nela existentes.
9) As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis.
10) Há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.
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Na última hora, parlamentares aliados do movimento indígena conseguiram retirar do parecer do PL 490 autorização para mineração, garimpo e hidrelétricas nas Terras Indígenas. Projeto segue ao Senado enquanto “marco temporal” será analisado pelo STF
Por 283 votos a favor, 155 contra e uma abstenção, o plenário da Câmara aprovou o Projeto de Lei (PL) 490/2007, na noite desta terça-feira (30/05). Na prática, a proposta inviabiliza a demarcação das Terras Indígenas (TIs), entre outros pontos (veja box abaixo).
O projeto vai agora ao Senado mas ainda não há previsão de quando será apreciado. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), prometeu um trâmite menos acelerado, com mais espaço para debates, em conversas com a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) e a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.
“O presidente do Senado já demonstrou que terá prudência, que passará [o PL] por todas as comissões, organizará audiências e ouvirá também os povos indígenas, sobretudo potencializando todos os procedimentos e ritos”, informou Xakriabá. “[Pacheco] ainda reafirmou o compromisso de analisar toda a inconstitucionalidade [do projeto] e que não deixará passar qualquer inconstitucionalidade”, acrescentou.
Na votação de destaques na Câmara, os partidos contrários ao PL 490 obtiveram uma vitória importante, conseguindo retirar do relatório do deputado Arthur Maia (União-BA) a possibilidade da realização do garimpo, da mineração e da construção de hidrelétricas nas TIs. O destaque é uma emenda sobre um dispositivo específico votada em separado e, nesse caso, foi apresentado pela deputada Duda Salabert (PDT-MG).
A redação final do relatório, no entanto, autoriza a instalação nesses territórios de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”. Além disso, segundo o texto aprovado, quando houver sobreposição entre TIs e Unidades de Conservação federais, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área.
Quais os principais problemas do PL 490?
- Permite a retomada de "reservas indígenas" pela União a partir de critérios subjetivos
- Aplica o “marco temporal” a todas as demarcações de Terras Indígenas, inviabilizando um procedimento já demorado
- Estabelece que a demarcação poderá ser contestada em todas as fases do processo administrativo, também inviabilizando-o
- Permite a implantação nas TIs de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”
- Dispensa atividades altamente impactantes da realização de consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas afetadas, conforme determina a Constituição e a legislação internacional
- Abre brecha para o fim da política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários
- Quando houver sobreposição entre territórios indígenas com Unidades de Conservação federais, o órgão ambiental responsável terá a prerrogativa de definir a gestão da área
Entenda em detalhes:
Nota Técnica do ISA sobre o PL 490 (resumo)
Governo orienta contra
PT, PCdoB, PV, PSOL, Rede e PDT orientaram suas bancadas contra o texto principal do PL 490. O bloco formado por União Brasil, PP, a federação PSDB-Cidadania, PDT, PSB, Avante, Solidariedade e Patriota liberou os parlamentares para que votassem como quisessem. Demais partidos, oposição e minoria posicionaram-se a favor (veja orientações de bancada e votos dos parlamentares).
A liderança do governo também orientou contra, diferente do que aconteceu na análise do regime de urgência, na semana passada, quando liberou seus partidos. A decisão foi alvo de críticas.
“Esta questão [da continuidade das demarcações de TIs] fez parte do programa de reconstrução apresentado pelo presidente Lula na disputa eleitoral. Foi um compromisso eleitoral”, afirmou o líder do governo, José Guimarães (PT-CE). De acordo com ele, a posição governista considerou também que o PL 490 altera a Constituição por meio de uma lei ordinária, o que não pode ser feito segundo a legislação. “É um risco grande. Isso gera instabilidade [jurídica]”, defendeu.
Na última hora, no entanto, o PT desistiu de defender um destaque, para evitar novos atritos com sua própria base e com os ruralistas.
Tentativa de acordo
Guimarães revelou a tentativa de um acordo entre governo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender igualmente a análise do PL, pelos deputados, e do chamado “marco temporal” das demarcações, pela corte. A negociação falhou.
O STF está apreciando o assunto por meio do caso específico da TI Ibirama-Laklanõ (SC), mas a decisão final terá “repercussão geral”, ou seja, servirá de regra para todos os procedimentos demarcatórios. O julgamento começou em 2021, já foi suspenso cinco vezes e tem previsão de ser retomado na próxima quarta (7/6). A questão é que o “marco temporal” também está previsto no PL 490.
Trata-se de uma tese ruralista que busca restringir os direitos dos povos originários. De acordo com ela, só poderiam ser oficialmente reconhecidas as terras por eles ocupadas em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. Alternativamente, teriam de comprovar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data.
A interpretação legaliza e legitima violências e expulsões sofridas por essas populações, em especial durante a Ditadura Militar. Também ignora que, até 1988, elas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para entrar na Justiça em defesa de seus direitos.
Tensão entre poderes
A votação de ontem na Câmara tornou-se mais um capítulo das tensões entre os três poderes. Lira pautou o projeto com o propósito explícito de pressionar o STF a recuar do julgamento. Defensores do PL alegaram que o tribunal estaria “usurpando” a competência do Congresso de legislar sobre o assunto.
“Eu acredito que, com essa votação aqui na Câmara, prevaleça o bom senso. O bom senso é o Supremo Tribunal Federal compreender que ele, o Supremo, deve agir como ‘julgador’. O STF existe para dirimir conflitos constitucionais, e não para legislar”, afirmou Arthur Maia. Ele disse que o STF segue o processo porque havia antes um “silêncio legislativo”, e que não seria mais o caso.
Agora, movimento indígena, políticos e governo estão em compasso de espera, porque a determinação final da corte deverá influenciar a tramitação do projeto e seu conteúdo, embora seja difícil prever o que de fato acontecerá. Ainda não é possível saber nem qual o teor final da decisão do tribunal nem qual será a posição do Senado.
Demonstração de força
Com o controle e o apoio da maioria da Câmara favorável ao PL 490 (ruralistas, bolsonaristas e “Centrão”), o placar da votação de ontem também converteu-se em mais uma demonstração de força de Lira diante de uma base governista ainda indefinida e de uma articulação política do Planalto criticada por todos os lados.
Isso porque o presidente da Casa marcou a votação da Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que reestrutura o primeiro escalão da gestão federal, também para ontem, a dois dias de seu vencimento, dificultando ainda mais negociações sobre a proposta.
A apreciação foi adiada para esta quarta e não tinha sido concluída até o fechamento desta reportagem. Se a MP caducar, pastas serão desfeitas e a Esplanada dos Ministérios voltará ao desenho da administração de Jair Bolsonaro.
As manobras de Lira colocaram o governo ainda mais na defensiva. Nos corredores da Câmara, circulou que ele teria condicionado a votação da MP a uma votação rápida e sem alterações de conteúdo do PL 490. Publicamente, o presidente da Câmara e o “Centrão” cobram cargos e a liberação de verbas de emendas parlamentares pelo Planalto.
Marco temporal
Bolsonaristas e ruralistas alegam que a adoção do “marco temporal” apenas garante o direito à propriedade privada e que a competência dos antropólogos responsáveis pelos estudos de identificação das TIs seria abusiva, entre outros pontos.
“O PL 490 vai na contramão de tudo aquilo que o texto constitucional orientou”, argumentou o secretário executivo do ministério dos Povos Indígenas, Luís Eloy Terena, numa coletiva antes da votação.
“[A Constituição] reconheceu o direito originário dos povos indígenas e colocou como requisito a tradicionalidade [da ocupação da terra]. E o próprio texto constitucional traz esses requisitos. E entre esses requisitos não tem tempo, não tem data, mas é a forma como cada povo se relaciona com o seu território”, completou. Ele alertou que a adoção do “marco temporal” promoverá mais conflitos e disputas judiciais por terra, e não mais segurança jurídica, como defendem os ruralistas.
Discurso emocionante
O clima esquentou no plenário da Câmara. O início da sessão foi conduzido pelo 4ª secretário da Mesa, o ruralista Lúcio Mosquini (MDB-RO), que dificultou o encaminhamento de “questões de ordem” dos parlamentares críticos ao PL 490.
Num determinado momento, o vice-líder da Maioria Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE) aproveitou a situação para, nessa condição, orientar o voto a favor de um requerimento para continuar a análise da matéria. Segundo o procedimento usual, no entanto, ele deveria ter liberado os parlamentares para votarem como quisessem, porque não havia consenso entre os partidos do bloco sobre o assunto - governo e partidos mais à esquerda lutavam para retirar de pauta o projeto. Sob protestos, a orientação foi alterada e o voto foi liberado.
O discurso mais emocionante da noite, último antes da votação do PL 490, foi de Célia Xakriabá. Acompanhada de outras parlamentares e de Sonia Guajajara, ela pintou o rosto e as mãos de urucum na tribuna do plenário. Sonia foi à Câmara pedir a retirada de pauta da proposta (veja vídeo abaixo).
“Como vocês [parlamentares] querem ser lembrados nesse Brasil tão diverso? [Como] o povo brasileiro que tem origem de sangue indígena nas veias ou que tem origem de sangue indígena nas mãos?”, questionou Célia. “Matar não é somente atirar sobre povos indígenas. Matar é arrancar direito”, completou. Ela voltou a chamar o projeto de “genocídio legislado”. No final da fala, o grupo repetiu as palavras de ordem “Demarcação Já”.
pAs parlamentares imitaram o gesto do pensador Aílton Krenak, há 36 anos, na Constituinte. Ele pintou o rosto com tinta para reafirmar sua identidade indígena e chamar atenção para a defesa dos direitos dos povos originários.
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O sócio fundador do ISA Márcio Santilli analisa a retomada das demarcações anunciada no final do Acampamento Terra Livre 2023. Artigo publicado originalmente na Mídia Ninja
Artigo publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 4/5/2023
Sexta-feira passada (28), encerrou-se a 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que reuniu cerca de seis mil indígenas de todas as regiões do país, em Brasília. O presidente Lula compareceu ao encerramento e anunciou medidas importantes para os povos indígenas. O Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi recriado para reunir os órgãos federais e o movimento indígena e articular ações de governo. Também foi instituído o Conselho Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI), no Ministério dos Povos Indígenas.
Lula também assinou seis decretos, que homologam as demarcações das Terras Indígenas (TIs) Arara do Rio Amônia (AC), Uneiuxi (AM), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS) e Avá-Canoeiro (GO). Pouco depois, foi anunciada a assinatura, pela presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, da portaria de identificação das TIs Sawré Bap’in, dos Munduruku, na região do Tapajós (PA), e Sete Salões (MG), do povo Krenak. Em abril, por meio de uma Medida Provisória, Lula já tinha destinado R$ 640 milhões para assistência emergencial aos Yanomami e, na sexta, anunciou mais R$ 12,3 milhões.
A relevância desses decretos vai além da quantidade, pois eles representam a retomada dos processos de demarcação das TIs, previstos na Constituição, mas paralisados há cinco anos. Cada um deles é especialmente importante, pois significa a conclusão, no âmbito administrativo, do procedimento demarcatório daquele território, essencial para as comunidades ocupantes e por elas esperado há décadas.
Processo com várias etapas
Porém, diferente do que muitos pensam, não é o decreto de homologação que define os limites de uma TI. O processo de demarcação tem várias etapas e começa pela criação, pela Funai, de um grupo de trabalho, coordenado por um antropólogo, para fazer os estudos necessários à identificação do território. Cabe ao presidente do órgão indigenista, por meio de portaria, aprovar a área identificada pelo grupo, como fez Joenia agora com as TIs Sawré Bap’in e Sete Salões.
Desde o início do processo administrativo, até a publicação da portaria de identificação no Diário Oficial da União (DOU), abre-se um prazo de 90 dias para contestações aos limites propostos para demarcação, que podem ser feitas por pessoas, empresas ou instituições. Em seguida, a Funai tem outro prazo, de 60 dias, para se manifestar sobre as eventuais contestações e, então, encaminhar o processo para o ministério responsável pela tomada de decisão política sobre os limites a serem demarcados.
Terceiros interessados, que tenham direitos afetados pela identificação da TI, têm o direito de contestar administrativamente os limites propostos após a sua oficialização. Caso não tenham o seu pleito reconhecido podem recorrer à Justiça. Mas não podem obstar, por outros meios, a continuidade do processo demarcatório e o reconhecimento do direito constitucional dos povos originários.
O Decreto 1.775/1996 atribuía ao ministro da Justiça a competência para decidir sobre esses limites, aprovando-os, rejeitando-os ou solicitando novas diligências à Funai. A Medida Provisória 1.154/23, que deverá ser votada em breve pelo Congresso, transfere essa competência ao novo Ministério dos Povos Indígenas.
É só após a decisão ministerial sobre os limites da área que a Funai pode providenciar a sua demarcação física, propriamente dita, com a colocação de marcos e placas de identificação e com o cercamento ou a abertura de picadas, conforme cada caso. Via de regra, a Funai contrata, por meio de licitação, empresas de engenharia para esse fim. É essa etapa, da demarcação física, que demanda maior investimento de recursos públicos. É nela, também, que é feita a digitalização do perímetro demarcado, que dá precisão ao memorial descritivo da área constante do decreto de homologação presidencial.
Sentido lógico
As etapas do processo demarcatório fazem sentido. A tomada de decisão política sobre os limites se dá em nível ministerial, acima da Funai, e sabendo-se de eventuais objeções, podendo consultar outros ministérios e o próprio presidente, se for o caso. Da mesma forma, faz sentido que a decisão política preceda o investimento na demarcação física, que resultaria em desperdício, caso os limites fossem posteriormente revistos. Também é lógico que o processo chegue às mãos do presidente com as pendências tratadas e o respaldo técnico cabível.
Não é mera formalidade a precisão das coordenadas geográficas do perímetro demarcado, que, muitas vezes, só pode ser assegurada in loco, durante a materialização dos limites. Não se trata só de aprimorar o ato presidencial, mas de evitar sobreposições e conflitos evitáveis após o registro da área na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e nos cartórios locais.
Desde o governo de transição, segundo fontes oficiais, havia 14 terras com demarcação física concluída. Essa informação gerou a expectativa de que um número correspondente de decretos de homologação fossem expedidos agora.
Fontes do governo alegaram, no entanto, que alguns desses processos ainda mantêm pendências formais e não teria havido tempo para a Casa Civil resolvê-las, mesmo com a demarcação física concluída. Esse órgão é o responsável por formular os textos de decretos a serem editados pelo presidente.
São as seguintes as oito terras que estavam na lista do governo de transição, mas não foram homologadas : Potiguara de Monte-Mor (CE), Xukuru-Kariri (AL), Toldo Imbu (SC), Cacique Fontoura (MT), Aldeia Velha (BA), Rio Gregório (AC), Acapuri de Cima (AM) e Morro dos Cavalos (SC). Grupos oriundos dessas terras, presentes no ATL, protestaram contra a exclusão dos seus territórios.
Se houver motivos formais para a não homologação, logo estarão sanados e os decretos serão editados. Pode ser que se espere a conclusão, em junho, do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da questão do “marco temporal”. Segundo essa tese ruralista, só teriam direito às suas terras as populações indígenas que estivessem em sua posse ou em conflito por elas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Não se sabe exatamente o que aconteceu, mas outra informação que circulou, extraoficialmente, é que houve forte pressão política contra as oito homologações que não saíram, aliás, o que é comum acontecer nesses casos. Pode-se imaginar, para cada uma dessas áreas, quais seriam os interesses contrariados, mas não se sabe porque teriam sido tão convincentes.
Ficam várias questões em aberto. Quem convenceu o governo a sustar essas homologações? O Planalto sabe que a definição de limites dessas terras antecedeu as demarcações? Vai sentar em cima dos processos, prolongando conflitos e postergando soluções? Vai devolvê-los à Funai?
No ATL, Lula declarou que pretende demarcar todas as TIs com processos inconclusos até o final do mandato. Isso seria ótimo para o Brasil, fazendo justiça e ajudando a ordenar a ocupação do território, embora existam casos em análise no Judiciário ou relativos a grupos isolados, cuja solução não depende apenas da vontade do governo. Para se aproximar da meta, Lula precisa avisar seus subordinados que não vale sentar em cima dos processos.
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Está chegando a data da maior mobilização indígena do país. O sócio fundador do ISA Márcio Santilli comenta o contexto e a importância desse evento fundamental para a causa e os direitos dos povos originários
Artigo publicado originalmente no site do Mídia Ninja, em 6/4/2023
Abril é mês de Acampamento Terra Livre (ATL). De 24 a 28 deste mês, milhares de indígenas, de todas as regiões do país, estarão acampados em Brasília para discutir o tratamento dado aos seus direitos e demandas pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Esta será a décima nona edição do ATL, que já se tornou uma tradição e uma referência de mobilização social democrática e participativa. Nada a ver com portas de quartéis. A Apib, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que convoca e coordena o ATL, já iniciou negociações com o GDF, o Governo do Distrito Federal, para definir o local do acampamento. A APIB sempre prefere o gramado da Esplanada dos Ministérios, mas o GDF quer transferi-lo para a Granja do Torto, ou outro local fora do Plano Piloto, alegando o trauma político causado pela predação golpista de 8 de janeiro. É provável que acabe ficando próximo da Funarte, atrás da Torre de Rádio e TV, o mesmo local do ano passado e um meio termo entre as expectativas.
Esta será a primeira edição do ATL após a criação do MPI, o Ministério dos Povos Indígenas, prometido pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva no último ATL, ainda como candidato. Há uma grande ansiedade com a proximidade da mobilização e as comunidades e organizações indígenas já articulam delegações, compram miçangas e arrecadam recursos para a viagem e estadia.
‘Marco temporal’
Uma das prioridades do movimento indígena é a retomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do julgamento sobre o “marco temporal”, uma interpretação jurídica dos ruralistas que pretende impedir a demarcação das terras que não estivessem na posse das comunidades indígenas em 8 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O julgamento está empatado em 1 X 1 e um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes adiou a conclusão do julgamento.
Em visita a uma aldeia Marubo, no Vale do Javari (AM), a presidenta do STF, Rosa Weber, prometeu que o julgamento será retomado ainda no primeiro semestre. Os povos indígenas esperam que seja reafirmado o caráter originário dos seus direitos territoriais - anterior à própria constituição do Estado brasileiro - e que as comunidades expulsas durante a ditadura militar também tenham as suas terras demarcadas.
A Apib espera que o julgamento seja retomado até a instalação do ATL, ou, pelo menos, que Rosa Weber anuncie a data dessa retomada. Espera, ainda, que os seus dirigentes sejam recebidos por Alexandre de Moraes e que ele vote contra o tal marco temporal.
Disputas no Congresso
Durante o ATL, será relançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, sob a coordenação da deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) nessa Legislatura. Na Legislatura passada, a frente foi liderada pela então deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), atual presidente da Funai. O requerimento de recriação, com assinaturas de 207 deputados, já foi homologado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Não se trata de burocracia, mas do resultado do trabalho de articulação da deputada e da sua assessoria, que superou e derrotou a tentativa do deputado Coronel Crisóstomo (PL-RO) de “grilar” a FPI para submetê-la a interesses anti-indígenas. O relançamento da FPI no ambiente do ATL terá forte simbolismo.
Também foi instalada, na Câmara, a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. Trata-se de uma comissão técnica permanente, que opinará sobre projetos de lei e outras proposições legislativas. Ela também será presidida pela deputada Célia Xakriabá, mas o seu mandato vai além das questões indígenas e inclui as demais populações tradicionais.
No Senado, deverá ser instalada a CPI das ONGs, liderada pelo senador Plínio Valério (PSDB-AM), que pretende criminalizar, além das ONGs, o próprio Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES e que ficou inativo durante o governo passado. A CPI pretende atingir, também, as organizações indígenas mais representativas, que conquistaram novas fontes de financiamento e espaços de influência política inéditos.
Políticas indígenas
Nesse ATL, o movimento indígena terá a primeira oportunidade para avaliar e discutir, coletivamente, os primeiros 100 dias do governo Lula, os avanços e impasses que os representantes indígenas têm vivenciado no MPI, na Funai, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e em outros espaços de governo.
Autoridades indígenas, como a ministra Sonia Guajajara, o secretário-executivo do ministério, Eloy Terena, a presidente da Funai, Joênia Wapichana, e o titular da Sesai, Weibe Tapeba, terão a oportunidade de expor às bases os desafios e dificuldades do governo e de ouvir críticas e sugestões sobre os rumos das políticas indígenas.
Nesse começo de governo, a Funai renovou portarias de restrições de uso de áreas ocupadas por indígenas isolados e constituiu grupos de trabalho para identificar Terras Indígenas. Espera-se que, até o ATL, sejam homologadas, por decretos presidenciais, 14 áreas e anunciadas outras medidas que marquem a retomada dos processos de demarcação, como determina a Constituição.
Também são esperadas as nomeações de pessoas indicadas pelas organizações indígenas para as coordenações regionais da Funai e outros cargos da Sesai, também disputadas por deputados e políticos locais. No ATL, todos poderão saber melhor sobre as condições de orçamento, estrutura e pessoal dos órgãos mais afetos às demandas indígenas, herdadas do governo anterior.
Será um bom momento para apontar e cobrar providências dos órgãos de governo em relação aos territórios que mais sofrem com invasões de garimpeiros, madeireiros, traficantes e grileiros, alguns dos quais até com decisões judiciais favoráveis à retirada dos invasores, mas ainda não cumpridas. O caso da Terra Indígena Yanomami, que foi objeto de intervenção direta do presidente Lula, registra avanços, mas também a necessidade de articular melhor a ação dos órgãos federais.
Vendo por dentro
Será, também, a hora do movimento indígena olhar-se por dentro, promover novos quadros para ocupar os vazios deixados pelos que foram para o governo, aprofundar parcerias e repor os parâmetros da sua autonomia. A Apib e outras organizações têm responsabilidades ampliadas e enfrentam inimigos fortes.
Ainda não foi divulgada a programação dos cinco dias de atividades do ATL, mas pode-se esperar que ela seja intensa. Embora ainda estejam presentes desafios típicos de resistência, que predominaram durante o governo Bolsonaro, já estão quentes as demandas de agenda positiva e dos avanços esperados para os próximos meses e anos.
No paralelo, certamente rolarão notícias de todas as regiões, papos sobre contratos de carbono, muitos cantos e danças, fofocas picantes e fortes emoções. Além dos artesanatos, das pinturas corporais e produtos da floresta.
Se você ainda não é parceiro da Apib, mas compreende a importância dos povos indígenas, dos seus territórios e das suas culturas para um bom projeto de futuro para o Brasil, chega mais. Visite os perfis da Apib nas redes sociais (@apiboficial), acompanhe o ATL, contribua com alguma grana e compartilhe notícias, imagens e impressões com os seus.
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A área devastada por atividade nas Terras Indígenas na Amazônia cresceu 495%, entre 2010 e 2020, aponta publicação, que traz lista mecanismos de funcionamento de invasões e propostas de solução
A Aliança em Defesa dos Territórios, articulação política dos povos Yanomami, Munduruku e Kayapó, lança, nesta quinta-feira (16), o dossiê "Terra Rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira”.
O documento explica os mecanismos que promovem o avanço do garimpo, aponta as fragilidades institucionais da cadeia do ouro e lista uma série de medidas para combater a atividade ilegal.
A área ocupada pelo garimpo nas Terras Indígenas (Tls) na região cresceu 495%, entre 2010 e 2020. Os territórios Kayapó (PA), Munduruku (PA) e Yanomami (RR) são os mais impactados pela exploração ilegal de ouro, respectivamente.
“O relatório mostra como o governo pode realmente combater o garimpo, desde a proteção integral dos territórios indígenas, passando pela cadeia do ouro até chegar à comercialização”, afirma uma liderança Kayapó que pediu para não ser identificada por temer ameaças.
A Aliança, que atua desde 2021 contra o garimpo e outras atividades que destroem as TIs, esteve em Brasília, na última semana, para entregar o dossiê aos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Justiça, dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos, à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai(, à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), à Polícia Federal e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). “Precisamos desse diálogo para construir os planos junto com o governo”, afirma Júlio Ye’kwana.
O estudo afirma que o atual boom do garimpo no Brasil foi “facilitado por medidas administrativas e decisões políticas do governo Bolsonaro” e é responsável por graves e massivas violações aos direitos humanos dos povos indígenas, “em especial dos Kayapó, Munduruku e Yanomami, como o direito à vida, ao território, à autodeterminação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à segurança alimentar e nutricional, à saúde e muitos outros”.
A publicação destaca ainda que o comércio de ouro no Brasil configura um “estado de coisas inconstitucional”, já que as instituições com atribuição legal sobre a cadeia econômica do ouro (Agência Nacional de Mineração, Banco Central do Brasil e Receita Federal) foram omissas em sua atuação.
“A superação desse cenário demanda a coordenação entre estas instituições, aliada ao fortalecimento e à autonomia dos órgãos e entes responsáveis pela fiscalização, gestão e proteção territorial de áreas protegidas, especialmente no enfrentamento às lavras ilegais”, diz o dossiê.
Agência Nacional de Mineração
A Agência Nacional de Mineração (ANM) é apontada como um dos principais gargalos na cadeia de custódia do ouro. A autarquia é responsável por conceder a Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), documento que autoriza a exploração de uma área pelo garimpo, limitada a 50 hectares para pessoas físicas e a 10 mil hectares, para cooperativas. No entanto, as falhas na fiscalização e a falta de um sistema eletrônico de controle permitem a atuação irregular de garimpeiros, que muitas vezes concentram um grande número de títulos minerários.
O regime de PLG dispensa, ainda, a realização de pesquisa mineral prévia no processo de licenciamento, o que facilita a ocorrência de "garimpos fantasmas", que servem para "esquentar" o ouro explorado ilegalmente em TIs ou Unidades de Conservação, por exemplo. Citando diligência do TCU divulgada em 2019, o dossiê aponta que a autarquia ocupa o 2º lugar no ranking dos órgãos mais expostos à fraude e corrupção no Brasil, ficando atrás somente da Agência Nacional de Transporte Terrestres (ANTT).
Banco Central
O Banco Central (Bacen) é responsável por supervisionar as Distribuidoras de Títulos e Valores Imobiliários (DTVMs), as únicas instituições autorizadas a comprar e a revender ouro de garimpos, por meio dos Postos de Compra de Ouro (PCO), os braços das DTVMs nos municípios.
O dossiê aponta que o Bacen tem uma fiscalização falha e não sanciona as DTVMs envolvidas na compra de ouro ilegal. Apenas oito instituições têm PCOs ativos no país, e um terço desses postos pertence a uma única DTVM, a FD’Gold. “Maior instituição do ramo, a FD’Gold DTVM comprou entre 2019 e 2020 — segundo o MPF — 1.370 kg de ouro ilegal”.
De acordo com o dossiê, o cenário de fragilidade institucional no Brasil é responsável por pela disseminação da exploração ilegal e da lavagem do ouro. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que analisou todas as permissões de lavra garimpeira no país apontou que nos últimos anos a produção ilegal de ouro superou o volume do metal explorado de forma regular.
“No Pará e no Mato Grosso, estados que concentram 94% das autorizações minerárias para garimpo no país, a comercialização de ouro ilegal e potencialmente ilegal superou a do ouro de origem lícita em 2019 e 2020 [...] No mesmo período, o Pará produziu 30,4 toneladas de ouro de garimpo, dos quais ao menos 22,5 toneladas (74%) foram extraídas de maneira irregular. Segundo o estudo, Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso responderam por 85,7% do comércio de ouro clandestino no mesmo período”.
Soluções
“O garimpo tem solução, mas ela tem que ser sistêmica e em múltiplas escalas, como é o problema. A gente quis apresentar um apanhado de medidas básicas para enfrentar o problema, tanto no âmbito da proteção integral de terras indígenas como na cadeia do ouro”, afirma Luísa Molina, pesquisadora do ISA responsável pela organização do dossiê.
A publicação lista uma série de ações para reprimir o avanço do garimpo
ilegal e impedir novas frentes de invasão, implementar mecanismos de fiscalização e controle já existentes e criar novos mecanismos para impedir a atividade. O dossiê reforça que é necessária uma articulação interinstitucional no âmbito do poder público para garantir a efetividade dessas ações.
“Não basta simplesmente colocar equipes em campo e destruir maquinário: deve-se efetivamente desarticular a organização criminosa por trás do garimpo e inviabilizar a utilização de equipamentos logísticos que dão apoio ao ilícito”, ressalta o documento.
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Bancada indígena demonstra força e vence corrida contra extrema direita para reinstituir coletivo parlamentar de defesa dos povos originários
O movimento indígena ganhou uma primeira disputa com a extrema direita no Congresso: a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) garantiu mais de 200 assinaturas de deputados e senadores para protocolar o pedido de recriação da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas. O mínimo exigido é de 198 subscrições.
Célia conseguiu se antecipar ao deputado ruralista-bolsonarista Coronel Chrisóstomo (PL-RO), que pretendia fazer o mesmo e tomar de assalto o coletivo para usá-lo contra os direitos das populações originárias. Chrisóstomo defende o garimpo em Terras Indígenas (TIs) e é contra a demarcação dessas áreas, entre outras posições consideradas anti-indígenas.
Agora, só é preciso que a Presidência da Câmara faça a conferência das assinaturas para oficializar o ato de recriação. No início de cada legislatura, é necessário reinstituir esses coletivos. Eles não têm prerrogativa formal na atividade legislativa, mas são espaços de articulação política e, em alguns casos, com influência considerável, a exemplo da frente ruralista e da ambientalista.
O risco de existir mais um coletivo parlamentar para supostamente defender os direitos dos povos originários não acabou, porém. Chrisóstomo segue recolhendo assinaturas para criar uma entidade equivalente, mas restrita à Câmara, de acordo com sua assessoria. As normas da casa não impedem que isso aconteça.
Polarização
A frente indígena tornou-se um espaço importante porque a agenda indígena ganhou relevância política nos últimos anos, reproduzindo a polarização política do país e provocando polêmicas importantes na legislatura passada. A mesma coisa deverá acontecer na legislatura que acaba de começar. Em sentidos opostos, tanto ruralistas e bolsonaristas quanto agora o governo Lula vêm dando prioridade ao assunto.
“Está aqui a nossa frente parlamentar, para conduzir e para pensar soluções estratégicas para esse parlamento, que não pode ser omisso [na pauta indígena]”, disse Célia, no evento de relançamento do grupo, no final da tarde desta terça (7), no Salão Verde da Câmara. “Esse vai ser um espaço de debate técnico e político”, continuou.
Célia será a coordenadora da frente na Câmara e Eliziane Gama (PSD-MA) terá a mesma função no Senado. A deputada também tenta ser indicada para liderar a recém-criada Comissão dos Povos Originários, essa, sim, parte do sistema oficial de tramitação da Câmara, com a atribuição de debater projetos e realizar audiências, e que também tornou-se estratégica diante do aumento da relevância política do tema.
A definição sobre as presidências das comissões da Câmara deverá ser fechada nos próximos dias, numa reunião de líderes partidários. As indicações para a função dependem do tamanho de cada bancada partidária e, a partir daí, de negociações espinhosas. A disputa é acirrada porque o cargo tem grande poder no controle do trâmite das propostas legislativas.
“A recriação da frente antes da extrema direita é uma demonstração de força política”, avalia o sócio fundador do ISA Márcio Santilli. “Vamos entrar numa nova etapa da vida dessa frente, em que permanecem presentes as demandas de resistência aos ataques contra os direitos indígena. Ao mesmo tempo, vamos ter de reforçar a agenda positiva, de construção de uma nova política indigenista, agora com cara e atores de uma nova política indígena, que começa permanecer nos espaços institucionais desse país”, ponderou, também no evento de terça.
Prioridades
Célia informou que a luta contra o Projeto de Lei (PL) 490, que pretende inviabilizar as demarcações de TIs; a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de TIs (PNGAT); o combate ao racismo; e a defesa do direitos das mulheres indígenas serão prioridades da frente parlamentar.
“A demarcação dos territórios indígenas é reconhecida pela ONU como a solução número um para barrar a crise climática. Então, defender os direitos dos povos indígenas, defender os territórios indígenas é defender a própria vida”, reforçou.
“Este momento é um momento histórico das nossas vidas. Um momento que temos pressa, pressa de articulação política”, afirmou a deputada Juliana Cardoso (PT-SP), que também se autoidentifica indígena. Ela destacou a necessidade de articular no governo recursos orçamentários para implementar as políticas e projetos de defesa dos direitos dos povos originários.
Representatividade
A tentativa de usurpar a frente parlamentar indígena tende a ser a primeira de uma série de ações de ruralistas e bolsonaristas que o movimento indígena terá de enfrentar no Congresso, inclusive uma possível disputa pela representatividade política dos povos originários.
Em 2022, foram eleitos para o Congresso sete candidatos autoidentificados indígenas, o maior número da história. Entre eles, está Silvia Waiãpi (PL-AP), bolsonarista de carteirinha que também defende posições contrárias às do movimento indígena ou abertamente anti-indígenas. Ela deve usar sua origem étnica para se contrapor às propostas e aos parlamentares progressistas.
Integrante da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kléber Karipuna reforçou que Célia Xakriabá e Juliana Cardoso são “a verdadeira representatividade, legítima, do movimento indígena” no Legislativo Federal.
“Qualquer outro que se identifica como indígena, mas que não pisou no chão [da aldeia], não tomou bala de borracha, não levou spray de pimenta na cara não nos representa nesse Congresso”, defendeu. Karipuna mencionou ainda o PL 191, que prevê a legalização da mineração em TIs, e as propostas de alteração da legislação sobre o licenciamento ambiental como duas ameaças aos direitos indígenas.
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Artigo publicado originalmente no site do Mídia Ninja, em 2/3/2023
O terceiro mandato do presidente Lula começa com uma grande novidade: o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Sonia Bone Guajajara foi escolhida para comandar a pasta e Joenia Wapichana, primeira mulher indígena eleita deputada federal, para assumir a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estará vinculada ao MPI. Já Weibe Tapeba assumiu a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Outros indígenas ocuparão mais cargos na administração federal.
Lula governará com 37 ministérios, com espaço para 15 partidos e vários movimentos sociais. As contradições entre esses vários campos vão se expressar dentro do próprio governo. Com a presença de uma ministra indígena, pela primeira vez, os conflitos entre direitos indígenas e interesses contrários serão tratados de forma direta, sem intermediários, embora com a eventual mediação do Presidente e do núcleo do governo.
Mas também haverá fortes embates com as oposições, não apenas no Congresso, mas também com ruralistas extremistas e bolsonaristas, empresários do garimpo, grileiros de terra e outros atores anti-indígenas. Parte deles envolveu-se no movimento antidemocrático e na depredação das sedes dos poderes em Brasília. As ligações entre quem financiou os atos e deles participou não deixam dúvidas. Os mesmos grupos estão em regiões críticas da Amazônia, onde se concentram os crimes socioambientais e proliferam os clubes de tiro, áreas sob o domínio de grupos golpistas e do crime organizado.
Levará tempo para recuperar órgãos, políticas e orçamentos públicos deteriorados relacionados à agenda socioambiental. Mesmo com vontade política, outros fatores serão determinantes para que ocorram avanços nesse tema. Por exemplo, o presidente Lula já definiu que será retomada a demarcação das Terras Indígenas e há uma lista de 14 áreas cuja oficialização poderá ser concluída nos próximos meses por decretos de homologação. Parte das pendências demarcatórias, porém, está sub judice e sujeita ao ritmo lento da Justiça.
Ameaças no Legislativo
No Legislativo, tramitam projetos que podem trazer retrocessos aos direitos já conquistados, como no caso da demarcação de Terras Indígenas e a possibilidade de abrir essas áreas para grandes empreendimentos. Parlamentares ruralistas, representantes do “ogronegócio”, têm investido pesado em atacar esses direitos, inclusive relacionando-se com pessoas envolvidas em crimes ambientais e invasores de terras indígenas. No momento, são os maiores responsáveis por radicalizações e ataques à segurança jurídica, como no caso da Terra Indígena Apyterewa (PA), já homologada, mas constantemente invadida.
Longe de voltar seu olhar para os graves problemas do setor, como o combate ao desmatamento, as cadeias produtivas que ainda utilizam trabalho escravo, o incentivo a novas tecnologias para o aumento da produtividade, parte da bancada ruralista ainda investe seus vultosos recursos em atacar indígenas e queimar ainda mais o filme do país no exterior.
Ninguém quer investir numa Amazônia cheia de ilegalidades e crimes ou ver as Terras Indígenas, as áreas mais ambientalmente conservadas do país, arrasadas pelo garimpo, pela mineração ou convertidas em pasto. Esses territórios não podem ser convertidos em grandes canteiros de obras, sob pena de deixarem de ser o que são. Ainda é cedo para saber se o Legislativo já entendeu o ativo que o país tem na mão. Mas parece que não.
Crise humanitária entre os Yanomami
Em janeiro, a imprensa divulgou as mortes de 570 crianças Yanomami por desnutrição e doenças evitáveis, resultado de uma crise sanitária provocada pela invasão garimpeira e a conivência do antigo governo. Em resposta, Lula foi a Roraima, junto com vários ministros, avaliar a situação e anunciar providências emergenciais para assistir as comunidades afetadas. A questão impactou a opinião pública, dominando o noticiário e as redes sociais.
No Senado, uma Comissão Externa constituída, em sua maioria, por parlamentares historicamente apoiadores da ilegalidade foi formada com o aval do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele envia um sinal ruim para a sociedade, que neste momento encontra-se chocada com as barbaridades cometidas contra os Yanomami. Perdeu uma boa oportunidade de mostrar protagonismo na construção de uma agenda que coloque limites à política de terra arrasada e sem lei que o último governo tentou impor à maior floresta tropical do planeta.
O discurso anti-indígena do governo passado deve ter aumentado o preconceito contra os povos originários entre os segmentos mais radicais de direita, além de fortalecer os interessados na apropriação das Terras Indígenas e dos seus recursos naturais. Por outro lado, a rejeição desse processo pela maioria da sociedade ampliou a adesão à defesa dos direitos dessas populações. A fidelização desse engajamento e a ampliação de novos apoios dependerão do desempenho dos que estão no governo e dos movimentos sociais como um todo, e será essencial para garantir a sustentabilidade futura dessas políticas.
Uma coisa é certa: a defesa dos direitos indígenas e das florestas não interessa apenas aos próprios indígenas e setores envolvidos com a defesa do meio ambiente. A expressiva votação da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), em Minas Gerais, mais votada que políticos tradicionais como Aécio Neves (PSDB), e de Sônia Guajajara (PSOL), em São Paulo, mostram que a sociedade está mobilizada e seguirá atenta.
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O sócio fundador do ISA Márcio Santilli comenta os bastidores do colegiado que deveria investigar a crise na Terra Indígena Yanomami, mas foi tomado pela bancada pró-garimpo
Artigo publicado originalmente do site do Congresso em Foco, em 28/2/2023
Quando vieram a público números e imagens do genocídio contra o povo Yanomami, houve forte clamor e muitos mobilizaram-se para ajudar a estancar a tragédia o mais rápido possível. Assassinos e cúmplices retraíram-se. Por incrível que pareça, o Senado compôs, para acompanhar a crise, uma “comissão externa”, com maioria de senadores de Roraima, e favoráveis aos criminosos!
Chico Rodrigues (PSB-RR), Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e “Dr.” Hiran (PP-RR), conhecidos senadores pró-garimpo, enviaram um ofício a diversas autoridades de Brasília requerendo que os garimpeiros flagrados na Terra Indígena Yanomami não respondam a processo criminal, conforme revelou a Agência Pública. De acordo com a reportagem, o documento foi entregue ao procurador-geral da República, Augusto Aras, aos ministros José Múcio (Defesa), Flávio Dino (Justiça) e Rui Costa (Casa Civil) e aos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira.
O senador Chico Rodrigues (PSB-RR) preside a comissão. Natural de Pernambuco, fez extensa carreira política em Roraima, onde foi governador. Já foi alvo de uma operação da Polícia Federal contra o desvio de recursos públicos destinados ao combate à Covid entre os Yanomami, que apreendeu dinheiro em espécie na sua cueca e uma grande pepita de ouro num cofre da sua casa.
Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e Dr. Hiran (PP-RR) são naturais do Maranhão e do Amazonas e também fazem política em Roraima. Mecias foi o responsável pela indicação dos gestores do Distrito de Saúde Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), cuja atuação contribuiu para a situação de genocídio. Dr. Hiran é o relator da comissão e propõe pagamento de auxílio financeiro para os garimpeiros. Não fala em punir os donos de garimpos ilegais.
Cínicos e afoitos
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi avisado da gravidade de compor uma comissão só com representantes de Roraima e, ainda mais, com posições assumidas pró-garimpo. Fez-se de surpreso quando confrontado com a parcialidade do colegiado, mas se dispôs a incluir nela os senadores Humberto Costa (PT-PE) e Eliziane Gama (PSD-MA), o que atenua, mas não reverte aquela tendência.
Pacheco quis ficar bem com os seus colegas de Roraima, mas deixou o Senado muito mal na fita. A repercussão da composição da comissão foi a pior possível. Além da notória falta de isenção, veio à tona toda a sujeira pregressa. Em vez de contribuir para estancar a crise, o Senado entrou pela contramão, como copromotor da situação.
Ungido como presidente por Pacheco, Rodrigues não perdeu tempo. Nem reuniu a comissão para discutir e aprovar um plano de trabalho, como exige o regimento do Senado. Recorreu ao apoio logístico da FAB e foi, sozinho, visitar a área.
Representantes dos Yanomami repudiaram a visita e a composição da comissão. Rodrigues aterrissou na base de Surucucu, não foi recebido pela comunidade e limitou-se a visitar o batalhão do Exército. Depois, sobrevoou áreas devastadas pelo garimpo e, ao chegar em Boa Vista, declarou que estava “tudo tranquilo” e que o território já estava praticamente vazio.
Na mesma semana, a base de fiscalização instalada pelos órgãos federais no Rio Uraricoera, que dá acesso à Terra Yanomami, foi atacada por um comboio armado de garimpeiros, que tentava evadir-se com um carregamento de cassiterita. Um dos garimpeiros foi ferido e preso. Os demais fugiram. Nem tudo está tranquilo.
Responsabilidades institucionais
Mecias e Hiran estão na moita, deixando Rodrigues como alvo central das críticas generalizadas à comissão. Eliziane e Humberto estão indignados com a afoiteza mais do que suspeita de Rodrigues e foram reclamar com Pacheco, que, a essa altura, já deve ter percebido a fria em que meteu o Senado.
O presidente da casa precisa tomar alguma providência. Se deixar rolar, vai se arrepender. É mais do que previsível um relatório cheio de benevolências para os garimpeiros e sem qualquer responsabilização pelo genocídio. Organizações civis pedem a recomposição da comissão. Pacheco vai tentar cercar o relator. O Senado está virando pau de galinheiro.
A situação também está péssima para o PSB, que acabou de acolher Chico Rodrigues entre os seus filiados. Talvez não se possa esperar que todos os “socialistas” sejam socialistas, mas, assim, já é demais. O partido tem uma história e um papel na reconstrução do país. E Rodrigues já não tem como reinventar a própria história.
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Supremo derruba lei de Roraima que estimulava a impunidade de invasores da Terra Indígena Yanomami
Em meio a crise humanitária causada pela presença do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (RR-AM), o governo de Roraima aprovou uma lei que proibia a destruição de máquinas de garimpeiros apreendidas durante operações dos órgãos de fiscalização. A medida vai contra a lei federal de Crimes Ambientais e foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
#Yanomami #STF #Justiça #Garimpo #GarimpoIlegal
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.:Produção: Ester Cezar
.:Roteiro: Ester Cezar
.:Apresentação: Ester Cezar e Helder Rabelo
.:Edição de áudio: Helder Rabelo
.:Artes para as redes sociais: Helder Rabelo
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Texto publicado originalmente no site da Mídia Ninja, em 8/2/2023
Na cosmologia ensinada por Davi Kopenawa, o ouro e outros minérios, quando retirados dos seus depósitos subterrâneos, exalam energias que forçam o rompimento e a queda do céu. Por isso, os pajés Yanomami precisam trabalhar o tempo todo para segurar o céu. Se os invasores matarem os Yanomami, o céu desabará sobre a Terra.
O pensamento de Davi tem uma similaridade impressionante com a ciência do clima e com as emissões excessivas de gases do efeito estufa, que aquecem a atmosfera e provocam secas agudas e violentas tempestades, ameaçando todas as formas de vida. É, também, uma metáfora viva da interdependência entre os povos e deles com a natureza.
Davi nos faz essa denúncia há 40 anos, desde as primeiras invasões garimpeiras à Terra Indígena Yanomami (AM-RR), ainda nos tempos de ditadura militar. Eram, então, 40 mil garimpeiros, grande parte oriunda do garimpo exaurido de Serra Pelada, no Pará. Foram milhares, mas nem é possível precisar quantos Yanomami morreram, vítimas de armas de fogo, da malária e de outras doenças. Quase todos os invasores foram retirados e a terra foi demarcada, mas pequenos focos ficaram, pulando de um lado para outro na fronteira com a Venezuela.
Agora, há outra invasão em massa. Os garimpeiros estão em menor número, mas provocam destruição maior. Talvez sejam uns 20 mil ou menos. Mas usam dragas, escavadeiras e outros equipamentos muito maiores e com alta capacidade de destruir igarapés inteiros. A contaminação do solo, das águas e dos organismos é muito maior.
Parte deles presta serviços de apoio, manutenção, alimentação e lazer, enquanto outros operam na extração do ouro ou da cassiterita. Entre esses, há garimpeiros profissionais, que tendem a vazar pela fronteira em busca de outros garimpos, e os sazonais, que seguem esse caminho para tentar levantar dinheiro, para a compra de imóveis ou carros, entre outros. Os nossos motivos são comezinhos. Por isso, os Yanomami dizem que os brancos não têm memória.
Chocante
Não faltaram denúncias. Várias comunicações e alertas formais foram feitas às autoridades. A Hutukara Associação Yanomami liderou campanhas e a mídia publicou bastante sobre o assunto. O caso chegou ao Tribunal Penal Internacional. Mas foi só depois que mudou o governo que informações oficiais do Ministério da Saúde revelaram as mortes (subnotificadas) de 570 crianças indígenas por desnutrição e outras causas evitáveis e vieram à tona imagens estarrecedoras de velhos e crianças famélicos.
Mas o que levantou, mesmo, a poeira foi a decisão do presidente Lula de visitar Roraima, de supetão, com ministros e jornalistas, pondo em evidência a situação caótica na Casa de Saúde Indígena de Boa Vista. Lula não foi ao território, mas colocou as cenas chocantes na casa de cada um de nós, tornando urgentes soluções para aquela situação inaceitável. E determinou ações emergenciais aos órgãos envolvidos, como os ministérios da Justiça, Defesa e dos Povos Indígenas, enquanto se planeja a retirada dos invasores.
No meio desse escândalo planetário, o governador reeleito de Roraima, Antônio Denarium, ainda foi capaz de piorar as coisas, declarando-se a favor da aculturação forçada dos indígenas, à revelia dos seus direitos constitucionais de viverem conforme as suas culturas, como se está fosse a solução para o gencídio em seu estado. Ele já havia promulgado uma lei estadual legalizando o garimpo predatório, declarada inconstitucional pelo STF. Mostrou-se ao mundo como um dos cúmplices dessa situação.
Representantes do ex-governo genocida tentam minimizar a repercussão da tragédia. Bolsonaro disse que o problema sempre existiu e não responde pelo crescimento de mais de 300% do garimpo durante o seu mandato nas terras Yanomami. Ele visitou pessoalmente garimpos ilegais e tentou assediar líderes yanomami para estender a predação pelo território. O genocídio decorreu de políticas deliberadas.
Solidariedade
Muita gente, chocada, está ajudando nas ações emergenciais com doações em dinheiro, alimentos e remédios. A Hutukara e o Conselho Indígena de Roraima (CIR) mobilizam parceiros na sociedade civil, como a Central Única das Favelas (CUFA), Médicos Sem Fronteira, Diocese de Roraima e o Instituto Socioambiental (ISA) para apoiarem as iniciativas do governo na assistência à saúde, distribuição de alimentos e comunicação.
Certamente, há entre as doações contribuições de empresas e de empresários indignados com a situação. O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) reiterou a sua oposição ao garimpo ilegal. Mas não houve, até agora, um movimento empresarial de escala para barrar de vez o acesso da produção predatória aos mercados e para viabilizar investimentos num modelo econômico sustentável na Amazônia. A cooperação internacional está oferecendo recursos para ajudar no front emergencial e na reestruturação das políticas socioambientais, desmanteladas no mandato anterior. Mas também pode fazer mais para impedir o acesso dos produtos e dos recursos ilegais aos mercados. A comoção gerada pelo genocídio precisa ir além da justa indignação para dar suporte à reversão definitiva do quadro atual.
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