Trajetória em defesa dos povos indígenas ganha registro inédito em livro escrito com seus netos, com ensinamentos sobre política, espiritualidade e cosmologia Mẽbêngôkre-Kayapó
O cacique Raoni Mẽtyktire lançou na última terça-feira (09/09), no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, o livro Memórias do Cacique. Reconhecido como uma das vozes mais influentes do Brasil na defesa dos povos indígenas e de seus territórios, Raoni iniciou seu ativismo em 1960, aprendeu português e teve papel fundamental na demarcação de Terras Indígenas e no reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição de 1988.

O lançamento contou com a mediação de Danna Dantas (Companhia das Letras) e a participação de Raoni Mẽtyktire, seus netos Beptuk Metuktire, Patxon Mẽtyktire, Paimu Txucarramãe, e do antropólogo Fernando Niemeyer.
Sua biografia vai muito além da longa trajetória em defesa dos povos indígenas: reúne um percurso etnográfico sobre a vida social, mitologia e cosmopolítica Mẽbêngôkre-Kayapó a partir de suas memórias e sonhos.
Raoni pertence ao povo Mẽbêngôkre, também conhecidos como Kayapó, subgrupo Mẽtyktire e falantes de línguas do tronco macro-jê.
Em Memórias do Cacique, o leitor acompanha a trajetória de Raoni Mẽtyktire a partir da conversão da sua memória oral em sua língua materna para a forma escrita em português brasileiro.
Os relatos, dirigidos inicialmente a seus netos, foram por eles traduzidos e editados em parceria com o antropólogo Fernando Niemeyer, que elaborou a pesquisa e o roteiro para orientar as entrevistas.
Muitos netos de Raoni participaram da elaboração da obra, principalmente os que assinam o prefácio, Beptuk Metuktire, Patxon Mẽtyktire e Paimu Txucarramãe compartilharam com o público a trilha de construção de Memórias do Cacique.

“Começamos desde o início com outros netos, como o finado Bepro, que foi uma das pessoas mais importantes nessa construção, e o Roiti Metuktire. Foi um trabalho de união e harmonia, em que todos nós estávamos juntos, aprendendo e compartilhando as mensagens do nosso avô. O processo de construção do livro é como um museu de conhecimento e quando nosso avô se for, nós seremos o museu dele. Vamos continuar transmitindo para nossos filhos e netos tudo que aprendemos durante a construção do livro”, compartilhou Beptuk Metuktire.
Patxon Mẽtyktire contou que sempre traduziu assuntos políticos para o seu avô. Ser um dos tradutores de Memórias do Cacique levou-o a entrar em contato com todo o universo cosmológico presente na memória de Raoni.
“Foi um aprendizado, pois ele contou coisas que a gente não sabia, da época dele de criança antes do contato. Ele falou sobre suas primeiras visões de pajé, a maneira como os Mẽbêngôkre-Kayapó se relacionam socialmente, as falas rituais, e teve um momento que olhamos um para o outro e perguntamos, e aí, como vamos traduzir isso para o português?”, contou durante a cerimônia.
“Eles sentiram o peso dessa responsabilidade. Na cultura deles é dever de um avô explicar a tradição e é dever de um neto aprender com o avô. Vimos eles fazendo deste livro um processo da reprodução da cultura Mẽbêngôkre-Kayapó de outra forma”, disse Fernando Niemeyer.
Para o antropólogo, que atua com os Mẽbêngôkre-Kayapó desde 2011, Raoni é eterno e é uma honra ser conterrâneo e contemporâneo dessa grande liderança.
“Daqui a muitos séculos Raoni será lembrado, e ele deixar esse livro para as próximas gerações Kayapó, e para a nossa sociedade, é uma contribuição muito importante que ele queria trazer. Tivemos o privilégio de apoiá-lo. Quem está perto dele sente essa força e vocês, que estão no mesmo espaço que ele, conseguem sentir a força que ele carrega”, disse.

“É uma trajetória que, espero, nós tenhamos coragem para chegar perto do que o nosso avô é”, afirmou emocionado Patxon Mẽtyktire.
Com a biografia, Raoni deixa ensinamentos muito importantes sobre sua luta, como a demarcação de territórios e conquistas de direitos para os povos indígenas. Ele também ensina que sua luta política é indissociável da dimensão xamânica, do lugar que ele acessa como pajé, da sua relação com os espíritos dos animais, dos peixes, das chuvas e dos ventos.
“Quero aproveitar e falar sobre minhas visões, pois sou pajé também. Tenho visto várias coisas, por exemplo: cheguei a encontrar os donos dos ventos e eles me mostraram que os ventos fortes estavam arrancando todas as folhas. Eu vi. Pude ver também pessoas que tem luz. E eles me disseram que essas ações na terra, como desmatamento, traz calor cada vez mais forte. Sei que na Câmara tem projetos de destruição e fico preocupado com a consequência que isso pode trazer para nós. Coisas muito ruins podem acontecer.”
Para Raoni, ao desmatar não perderemos apenas árvores, mas todo um universo de espíritos, fundamentais para o equilíbrio da vida.
Ele mostra também como o sonho é importante, uma forma de agir no mundo e transformar a realidade, algo que outros intelectuais indígenas como Davi Kopenawa e Ailton Krenak trazem em seus livros: uma forma de agir no mundo. Com um estilo que aproxima o leitor das memórias e dos sonhos dos Mẽbêngôkre-Kayapó, Raoni convida a sonhar a partir da cosmologia de seu povo, em uma narrativa que torna o estado de vigília como um importante momento para as decisões que orientam a política e a vida social entre os Mẽbêngôkre-Kayapó desafiando a maneira como a sociedade não indígena não leva em consideração a importância dos sonhos para suas vidas.
Beptuk Metuktire disse que, durante a construção do livro, seu avô sempre falou que é pajé e os netos sabem que ele é pajé. “Eu costumo comentar que enquanto estávamos gravando o meu avô surgiam cobras e corujas na janela do quarto, nos olhando. Acredito que era o chamado da natureza para construir esse livro”.
Entender como podemos aprender a sonhar, como Raoni, talvez seja o primeiro passo para escutar o chamado da natureza e viver em paz.

O livro Memórias do Cacique é uma publicação da Companhia das Letras e contou com o apoio do Instituto Socioambiental (@socioambiental), do Instituto Sociedade, População e Natureza (@ispn_brasil) e do Instituto Raoni (@institutoraoni).
Durante a organização da cerimônia de abertura, os netos discutiram a sequência dos cantos e escolheram finalizar a cerimônia com o Kôrãti, que é um canto que os Mẽbêngôkre-Kayapó cantam para celebrar grandes conquistas. O canto consta no primeiro capítulo do livro, e faz parte do episódio mítico da origem da agricultura e diferenciação dos povos. “O livro foi uma grande vitória para nós, conseguimos concluir depois de cinco anos e estamos apresentando ele para vocês, por isso agora vamos cantar o Kôrãti:
Kôrãti…Krãtôitxô kamã
arôrô arôrô
ne kôrãti krãtôitxô kamã
arôrô arôrô
Grande surubim sobre o tracajá
boia boia
E o grande surubim sobre o tracajá
boia, boia