De castanheiros a indígenas, as histórias de quem depende de rios e longas viagens revelam os desafios e as urgências para incluir a sociobiodiversidade no PNL 2050
*Artigo originalmente publicado no Valor Econômico
Um ribeirinho da Reserva Extrativista (RESEX) Riozinho do Anfrísio, no Pará, troca sua produção anual de castanha-do-brasil com um atravessador por mercadorias de primeira necessidade. A castanha é vendida por valores abaixo do mercado, enquanto os produtos comprados – café, sandálias e facão – chegam a custar até 200% mais caro que na cidade. Ele sabe da diferença de preços, mas qual seria a alternativa? Para levar sua produção até Altamira, seriam necessários 600 litros de gasolina e vários dias de viagem pelos 500 quilômetros de rio que separam a comunidade do centro urbano.
Na Terra Indígena (TI) Xipaya, um pouco mais acima do mesmo rio, um indígena espera há uma semana por carona para levar a mãe idosa até Altamira e realizar a prova de vida do INSS. São três dias de viagem, 800 litros de combustível e, embora haja alojamento comunitário na cidade, os gastos são altos com alimentação. Além disso, a espera pela carona de volta é imprevisível – e o tempo fora de casa prejudica as atividades agrícolas e extrativistas sazonais.
No Território Indígena do Xingu (TIX), em Mato Grosso, onde vivem cerca de nove mil indígenas de 18 povos, algumas aldeias têm acesso terrestre a centros urbanos. Ainda assim, a ausência de transporte coletivo obriga quem não consegue carona a pagar fretes caros para acessar serviços básicos como saúde, documentação e comércio.
Na TI Yanomami, no Amazonas e Roraima, o desafio é ainda mais complexo. A maior parte da população indígena só chega às cidades por via aérea, em pequenas aeronaves de baixa capacidade de carga. Assim, o transporte de pessoas e insumos depende de “caronas” em aviões que prestam serviço à saúde ou à Funai. Isso afeta tanto o acesso a serviços quanto às oportunidades de renda, limitadas a produtos leves e de alto valor agregado.
Os exemplos acima revelam as enormes distâncias e desafios de mobilidade na Amazônia. Para efeito de comparação, Altamira, município onde estão a Resex Riozinho do Anfrísio e a TI Xipaya, tem sua área uma vez e meia maior que Portugal e abriga um mosaico de Áreas Protegidas que somam mais de nove milhões de hectares. No entanto, apenas a região próxima à cidade é atendida por transporte público.
Fato é que as dificuldades logísticas comprometem a viabilidade econômica das cadeias da sociobiodiversidade, enquanto a falta de mobilidade afeta o exercício de direitos básicos de comunidades. Por trás de cada família prejudicada, há uma pergunta que o país ainda não conseguiu responder: como garantir o direito de ir e vir, de produzir e de acessar serviços, sem causar grandes impactos no território? É essa reflexão que começa a chegar às mesas de planejamento do Estado brasileiro.
No dia 4 de junho, pela primeira vez, o Ministério dos Transportes (MT) – provocado por organizações da sociedade civil – promoveu uma escuta com especialistas e representantes de povos e comunidades tradicionais de todo o país. O objetivo foi debater os desafios logísticos das economias da sociobiodiversidade e da mobilidade em territórios indígenas, quilombolas e tradicionais, para subsidiar o diagnóstico do Plano Nacional de Logística 2050 (PNL 2050).
Historicamente, o planejamento de transportes chega aos povos da floresta apenas como impacto negativo: grandes obras, compensações e consultas não realizadas. Portanto, a reunião representou um marco na tentativa de construir uma agenda estrutural para a política de infraestrutura de transportes voltada a esses povos. Os relatos mostraram que superar os desafios dos territórios coletivos exige mudar o próprio paradigma de desenvolvimento que orienta os planos setoriais.
Investimentos em ferrovias, hidrovias e rodovias isolados das necessidades de povos e comunidades tradicionais não são adequados às economias da sociobiodiversidade nas realidades amazônicas onde comunidades vivem dispersas em vastas áreas de floresta. Em vez de mega infraestruturas que frequentemente trazem mais impactos negativos do que soluções e são desconectados das dinâmicas de mobilidade e escoamento da Amazônia, a proposta que vem da floresta é a criação de um programa de logística com soluções adaptadas, regionalizadas e intermodal, que conecte a produção da floresta e o deslocamento das pessoas até os centros urbanos.
A partir das experiências e das contribuições da reunião com o MT, o governo tem agora subsídios para somar a sociobiodiversidade como eixo estratégico de desenvolvimento. Incorporar essa perspectiva significa reconhecer e fortalecer os territórios coletivos – e finalmente incluir, no PNL 2050, os povos e comunidades que há séculos protegem as florestas e biomas em benefício de toda a sociedade brasileira.
É hora de transformar políticas em ação: fazer do PNL um dispositivo de redução de desigualdades regionais, de fortalecimento das economias locais sustentáveis e de reconhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais, garantindo que suas vozes, direitos e modos de vida sejam centrais na construção do desenvolvimento sustentável no Brasil.
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