Documento propõe metas de reparação racial e justiça climática, reforçando o protagonismo quilombola nas negociações internacionais
O movimento quilombola apresentou, pela primeira vez, nesta quarta (15), uma Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) própria, elaborada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) – principal organização representante dos quilombolas no Brasil – com apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA).
Acesse o documento.
As NDCs são compromissos que cada país define de forma voluntária para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e se adaptar aos impactos das mudanças climáticas. Eles devem ser apresentados no âmbito das negociações internacionais sobre mudanças climáticas.
O documento foi proposto como um anexo estratégico à NDC oficial do Brasil e busca garantir o protagonismo quilombola nas negociações da COP30, a conferência internacional sobre mudanças climáticas que acontece em novembro, em Belém (PA).
A iniciativa da Conaq é considerada histórica por buscar colocar no centro da agenda climática comunidades vitais para a conservação das florestas, mas historicamente excluídas das políticas ambientais. A NDC Quilombola lembra que ignorar os quilombos no debate climático perpetua uma lacuna grave e representa uma ineficiência estrutural na política climática do país.
Para Biko Rodrigues, articulador político da Conaq, a entrega de uma NDC própria prova que os saberes ancestrais e o modo de vida quilombola são fundamentais para enfrentar a crise climática. “Mais do que um documento, é um chamado para que o país e o mundo reconheçam o protagonismo dos povos quilombolas e afrodescendentes”.
“Com essa NDC própria, afirmamos nosso lugar de sujeito político, mostramos que nossos modos de vida protegem. Nossos quilombos são muito mais que resistentes a antigos regimes escravocratas, somos também a resposta do futuro. Não há justiça climática, sem território titulado”, afirma.

Metas da NDC Quilombola
Diante desse cenário, a NDC Quilombola apresenta propostas estratégicas e metas concretas até 2035. Entre elas, estão a titulação integral de 44 territórios até 2026 e de 536 até 2030, alcançando 2 milhões de hectares e a suspensão imediata dos Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sobrepostos a territórios quilombolas.
Também propõe a criação de uma força-tarefa judicial para agilizar 300 ações contra o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pela titulação desses territórios na esfera federal. A proposta inclui ainda a destinação prioritária de florestas públicas a 55 comunidades quilombolas da Amazônia.
Além disso, a NDC prevê a implementação de políticas de pagamento por serviços ambientais (PSA) e de manejo tradicional em 300 territórios, com potencial de contribuir com até 160 milhões de toneladas de carbono.
“Esperamos que o Estado brasileiro compreenda que não existe transição ecológica justa sem a presença dos quilombos. Queremos que esse documento seja levado em consideração nas políticas climáticas e que gere compromissos concretos de parceria, respeito e investimento. Nossa expectativa é que o Brasil e o mundo entendam que proteger os quilombos é também proteger o futuro do planeta. Titulação já!”, enfatiza Rodrigues.

Quilombos e mudança climática
Os dados reunidos no documento revelam o potencial climático dos territórios quilombolas. Entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa nessas áreas foi de apenas 4,7%, contra 17% em áreas privadas, segundo dados do MapBiomas. Já os estoques de carbono chegam a 1 bilhão de toneladas, somente nos territórios já mapeados ou delimitados, com densidade 48,7% maior do que em áreas vizinhas, de acordo com pesquisa publicada na revista Science.
A titulação aparece como um fator decisivo para a conservação: territórios titulados perderam apenas 3,2% de sua vegetação nativa, contra 5,5% nos que ainda não possuem título.
“Entendemos que o futuro do clima passa pela defesa da vida dos nossos territórios. Nós, quilombolas, há séculos preservamos a biodiversidade, os rios, as florestas e o clima, mas quase nunca somos ouvidos nas decisões que atingem o nosso chão”, aponta Rodrigues.
A questão fundiária segue como o maior obstáculo. Atualmente, 87% dos quilombos no país não têm titulação definitiva. Existem 1.937 processos abertos no Incra, mas apenas 23 territórios foram titulados integralmente pelo órgão e outros 34 territórios possuem a titulação parcial. Os institutos de terras estaduais, prefeituras e outros órgãos federais também titularam integralmente 178 territórios e outros 10 territórios possuem apenas a titulação parcial. No ritmo atual, seriam necessários 2 mil anos para concluir a regularização.
Essa morosidade abre espaço para diversas ameaças, como os 15.339 registros de imóveis rurais (CARs) irregulares sobrepostos a 465 territórios, que colocam em risco 1,1 milhão de hectares e 327 milhões de toneladas de carbono.
Além disso, obras de infraestrutura incidem sobre quase metade (48%) da área total dos territórios quilombolas e 1.385 requerimentos minerários atingem 261 territórios, ameaçando 223 milhões de toneladas de carbono – quase metade deles relacionados a minerais da chamada transição energética.

Lançamento em Brasília
O lançamento oficial da NDC Quilombola ocorreu em Brasília, nesta quarta-feira (15), em um evento que reuniu representantes do governo e da sociedade civil. Estiveram presentes autoridades como Juarez Ferreira, da Secretaria-Geral da Presidência; Sheila de Carvalho, secretária de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça; Francinete Cruz, do Ministério da Igualdade Racial (MIR); e Mônica Borges, diretora de Territórios Quilombolas do Incra.
O evento também contou com a participação de Selma Dealdina e Xifroneze Santos, da Conaq; Milene Maia, do ISA; Aurélio Vianna, da Tenure Facility; e Douglas Belchior, do Instituto de Referência Negra Peregum.
Durante o evento, Juarez Ferreira afirmou que o documento será internalizado na Secretaria-Geral da Presidência, reforçando o compromisso do governo federal com os movimentos sociais. “A gente deve reconhecer os atrasos e a lentidão que foram pontuadas aqui, mas posso afirmar que serão tomados os devidos encaminhamentos”, disse, destacando que a proposta representa uma oportunidade de avançar na titulação e proteção dos territórios quilombolas.
Mônica Borges, do Incra, lembrou que o órgão atuará para transformar a NDC Quilombola em um anexo à contribuição oficial do Brasil. Segundo ela, “sabemos o quanto será desafiador, mas também o quanto será impactante se essa NDC for incorporada oficialmente. Temos pouco tempo até a COP30, e é fundamental que esse trabalho seja feito de forma conjunta e articulada com os ministérios.”.
Francinete Cruz, representando o MIR, reforçou que a pauta climática exige cooperação. “Esse é um espaço de pactuação com outros ministérios, porque dentro do governo nada é feito sozinho. A pauta climática é ampla, competitiva e exige diálogo e cooperação nacional e internacional”, afirmou.
Pelas lideranças quilombolas, Selma Dealdina destacou que o documento reforça a necessidade de reconhecer o protagonismo dos quilombos nas políticas públicas. “Esse é um chamado para que o Estado brasileiro incorpore a realidade e o protagonismo quilombola em suas ações, garantindo o reconhecimento de que não há solução climática justa sem territórios quilombolas reconhecidos”, afirmou.
Milene Maia, do ISA, destacou que a NDC Quilombola não é apenas um instrumento técnico, mas um mecanismo de transformação social e política. “Essa NDC materializa informações concretas e objetivas para que o poder público possa agir de maneira efetiva e para que a sociedade também possa cobrar do Estado o que ele não tem feito há séculos. Mais do que isso, ela desperta um processo de consciência sobre o que significa esse patrimônio para o país.”