Comitiva participou de reuniões e apresentou relatório técnico com recomendações para o enfrentamento ao crescente número de casos da doença na região
Com a pauta urgente do enfrentamento ao câncer de colo de útero entre mulheres indígenas da região do Rio Negro, o Departamento de Mulheres Indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn) levou denúncias, dados e propostas a autoridades em Brasília, durante a IV Marcha de Mulheres Indígenas e a I Conferência Nacional das Mulheres Indígenas, realizadas de 2 a 8 de agosto.

Representantes das 23 etnias da região reforçaram a necessidade de políticas públicas efetivas para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da doença, que atinge as mulheres indígenas em taxas até quatro vezes maiores que as registradas na população não indígena.
A comitiva — composta pela coordenadora do Dmirn, Cleocimara Reis Gomes, articuladoras regionais do departamento, a vereadora indígena de São Gabriel da Cachoeira Jakeline Vieira, a coordenadora regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) no Rio Negro, Maria do Rosário, a representante da Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma Lucilene Pereira, e a assessora de gênero e antropóloga do Instituto Socioambiental (ISA) Dulce Morais — participou de reuniões com representantes da Funai, Ministério das Mulheres, Ministério da Saúde e Secretaria de Saúde Indígena em Brasília, onde apresentaram o relatório técnico Saúde da Mulher Indígena e Câncer do Colo de Útero em São Gabriel da Cachoeira.

O documento foi elaborado em parceria entre o Programa Rio Negro do ISA e o Departamento de Mulheres Indígenas, em diálogo com os Distritos Sanitários Especiais Indígenas Alto Rio Negro e Yanomami e Yekwana, a Secretaria Municipal de Saúde, a Comissão Permanente de Saúde, Educação e Assistência Social da Câmara Municipal e, por fim, a Associação Civil de Direito Privado, sem fins lucrativos, IBSAÚDE.
Ele destaca a visão das mulheres rionegrinas sobre o que significa ter saúde, entendida por elas não só como a ausência de doenças, mas como o conjunto de condições para viver com dignidade, em harmonia com a natureza e a comunidade, conforme destacado por elas no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) do Alto e Médio Rio Negro.
Apesar de solicitados dados ao Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro e à Secretaria Municipal de Saúde referentes aos últimos cinco anos sobre casos de câncer de colo de útero por comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira, não houve retorno até a apresentação do relatório às autoridades.

Desde 2016, o Departamento de Mulheres Indígenas atua de forma estruturada na pauta da saúde da mulher, com foco especial na prevenção e enfrentamento das violências. Em 2022, após a ocorrência de seis mortes pela doença, o diálogo com instituições públicas foi intensificado para compreender os casos e buscar estratégias de cuidado e prevenção no município.
De acordo com a pesquisa The intersection of race/ethnicity and socioeconomic status: inequalities in breast and cervical cancer mortality in 20,665,005 adult women from the 100 Million Brazilian Cohort, publicada em 2022, as desigualdades étnico-raciais são significativas quando se trata de mortalidade por câncer de mama e colo de útero no Brasil. Os dados apontam que a mortalidade por câncer de colo de útero foi especialmente alta entre mulheres indígenas (80% maior), asiáticas (63%), 27% maior entre pardas e 18% maior entre mulheres pretas.
Já o estudo Cervical cancer screening in Brazilian Amazon Indigenous women: Towards the intensification of public policies for prevention (Novais, 2023), que analisou dados de exames de Citologia Oncótica do colo do útero de mulheres indígenas de várias etnias da Amazônia brasileira, mostra que a prevalência de lesões de alto grau — que podem levar ao câncer do colo do útero — foi de 3 a 4 vezes maior em mulheres indígenas em comparação com não indígenas na faixa etária de 25 a 64 anos.
Associada à infecção pelo HPV, vírus sexualmente transmissível, e ao impacto do tratamento da doença na fertilidade feminina, o câncer de colo de útero exige prevenção, com exames e vacinação, diagnóstico precoce e acesso ao tratamento adequado para garantir os direitos reprodutivos das mulheres, incluindo a possibilidade de gestação após o tratamento.
Na região do Rio Negro, as mulheres indígenas enfrentam diversas barreiras culturais e logísticas que dificultam o acesso ao atendimento médico e à realização do exame preventivo do câncer de colo de útero. Muitas precisam se deslocar das comunidades até a sede do município de São Gabriel da Cachoeira, o que, em muitos casos, significa percorrer longas distâncias de barco. Além disso, a impossibilidade de levar os filhos e a falta de informação sobre os procedimentos e resultados afastam ainda mais as mulheres do diagnóstico e tratamento.
Fatores culturais, alimentares e linguísticos também impactam os cuidados de saúde dessas mulheres. A adaptação à alimentação urbana, muitas vezes distinta da consumida nas comunidades, pode interferir nos tratamentos, sobretudo quando há regras tradicionais de resguardo, como restrições ao consumo de pimenta, certos tipos de peixe ou carnes de caça.
O relatório destaca ainda que a língua é fundamental para uma comunicação eficaz e que conhecer os costumes das diferentes etnias é essencial para que tanto profissionais indígenas quanto não indígenas saibam como dialogar com as mulheres, especialmente aquelas de etnias de recente contato, que muitas vezes recebem atendimento com a ajuda de intérpretes que comunicam em Tukano, língua que não é a primeira desses povos.
Por fim, o relatório reforça a necessidade de articulação permanente entre as mulheres indígenas, os DSEIs e a Secretaria Municipal de Saúde para o desenvolvimento de estratégias coletivas e territorializadas de prevenção e cuidado contra o câncer de colo de útero.
Destaca ainda iniciativas já realizadas na região e que mostram que, quando o preventivo é realizado de forma estruturada, qualificada, com profissionais mulheres e com devolutiva do resultado junto com conversas, explicações e tratamentos, as mulheres indígenas demonstram maior adesão ao exame e aos cuidados necessários para a prevenção e tratamento da doença.
Como exemplo da eficácia e importância dessa articulação, o documento traz a atuação dos Expedicionários da Saúde (EDS), que em 2023 realizou a expedição “Mulheres da Floresta” e atendeu 168 mulheres em São Gabriel da Cachoeira.
Também, ressalta o Projeto de Manejo do Risco de Câncer Cervical (MARCO), que em 2024 e 2025 aplicou método de rastreio de HPV com amostras autocoletadas entre mulheres de 30 a 49 anos. Além disso, menciona o projeto “Redes de Cuidado: construção da linha de cuidado do câncer de colo de útero”, desenvolvido nos territórios indígenas Yanomami e Xingu com apoio da Unifesp, UFMG, Projeto Xingu e ISA.

Em 2025, o projeto chegou à comunidade de Maturacá (localizada na TI Yanomami no AM) por meio da articulação da Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma. Em junho, a equipe realizou 200 exames de Papanicolau, fez a análise e o tratamento dos casos identificados e capacitou profissionais de saúde indígena para atuar nessa linha de cuidado.
A metodologia deste último projeto, que já conseguiu erradicar a doença entre as mulheres xinguanas e apresenta bons resultados no território Yanomami em Roraima, motivou o Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro a solicitar à Secretaria de Saúde Indígena recursos para expandir o projeto a São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, contemplando as 23 etnias da região.
Como prioridade, as representantes indígenas enfatizam durante as articulações em Brasília o fortalecimento dos fluxos de biópsia uterina no atendimento à saúde indígena, garantindo a liberação ágil dos resultados, sobretudo nos casos encaminhados via Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casai).
Outras recomendações incluem priorizar o acesso das mulheres indígenas — especialmente em casos oncológicos — aos serviços de referência e contrarreferência do Sistema Único de Saúde (SUS), considerando barreiras territoriais, logísticas e culturais.
Também apontam para a garantia de que o atendimento e acompanhamento de casos de câncer de colo de útero sejam feitos por equipe multidisciplinar, com nutricionista, psicóloga e conhecedora tradicional.
Além disso, recomendam a oferta de ações itinerantes periódicas de ginecologia, colposcopia, biópsia, contracepção e planejamento reprodutivo, evitando deslocamentos desnecessários, a contratação de médicas mulheres para atendimento ginecológico em terras indígenas e a produção e disseminação de informações nas línguas indígenas sobre prevenção e cuidados relacionados à saúde sexual e reprodutiva.
Rionegrinas em marcha
Para além dos trabalhos de incidência política, as rionegrinas participaram da programação da IV Marcha de Mulheres Indígenas, tendo destaque na mesa do Júri Ancestral, com leitura das denúncias contra as violências sofridas pelas mulheres rionegrinas. Também marcaram presença na mesa internacional “Planos de Vida: territórios seguros para a vida das mulheres indígenas e experiências sobre instrumentos de salvaguarda na perspectiva das mulheres indígenas”, na qual Cleocimara Reis apresentou os trabalhos do departamento no enfrentamento às violências, que resultaram na publicação do livreto Cuidados e prevenção no enfrentamento à violência contra mulheres no Rio Negro.
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Por esse trabalho, que envolve formações, produção de livretos e participação na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), o Dmirn foi um dos grupos de mulheres indígenas homenageados na sessão solene que aconteceu no Plenário da Câmara em reconhecimento aos trabalhos no enfrentamento às violências contra mulheres indígenas.